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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Estudo relaciona Chico Buarque a temática de 'Raízes do Brasil'



Monica Ramalho, Jornal do Brasil
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/12/04/e04124538.asp

RIO - Língua Cantada é uma coleção de bolso que analisa alguns dos mais marcantes discos da música brasileira. Lançada pela editora Língua Geral, reúne textos de poetas, críticos, escritores, músicos, produtores e acadêmicos sobre seus álbuns favoritos, de artífices como Lenine, Sérgio Sampaio, Caetano Veloso e Lupicínio Rodrigues (sobre este, leia resenha na página ao lado). Uma pátria paratodos: Chico Buarque e as raízes do Brasil, de Heloísa Maria Murgel Starling, discute o clássico Paratodos, lançado em 1993. O disco celebrou meio século de vida do compositor e marcou sua volta à seara musical após a feitura do seu primeiro romance, Estorvo. O repertório parece radiografar o íntimo do artista.

“Pela primeira vez num trabalho de Chico abre-se a possibilidade para essa exposição: o disco aborda a força de uma temática que, condensada em alguns motivos básicos, percorre suas faixas de ponta a ponta e traz a confirmação da passagem do tempo e das alterações que esta passagem acarretou em sua produção musical”, aponta a autora.

No entanto, o estudo vai além do disco supracitado e interpreta o cancioneiro de Chico Buarque como um todo, entrelaçando determinadas temáticas com fundamentos de outro clássico, o precursor Raízes do Brasil, de 1936, feito com as tintas do historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), pai de Chico.

As canções Fado tropical e Não existe pecado ao sul do Equador, parcerias com Ruy Guerra, ambas de 1973, inauguram as citações mais explícitas do pensamento paterno no inventário sonoro de Chico Buarque. O argumento do frevo composto para a trilha da peça teatral Calabar, de 1975, aparece originalmente no segundo capítulo de Raízes do Brasil. Diz o trecho: “Corria na Europa, durante o século 17, a crença de que aquém da linha do Equador não existe nenhum pecado”.

Em 1984, Chico gravou o samba Pelas tabelas, reafirmando seu diálogo com o famoso ensaio do pai, através das “tênues e tensas relações entre o mundo privado e a esfera pública”, nas palavras de Starling. Em abril daquele ano, o povo brasileiro saiu às ruas em passeatas pelas Diretas Já. O protagonista de Pelas tabelas mistura sua vida pessoal ao grande acontecimento político. Ele caminha pelo asfalto cabisbaixo, depois de esperar em vão pela amada num local previamente combinado. Acaba cruzando com a massa popular, que reivindica o direito ao voto. Esta canção, aliás, remete a um texto de Gustave Flaubert (1821-1880), no qual o escritor narra as desventuras de um rapaz que também se viu abandonado pela amada e vagou, frustrado, pelas vias públicas parisienses até se misturar a um comício, em 1848. Flaubert, Sérgio e Chico, cada um ao seu modo, provaram que estavam à frente do seu tempo, ao falar do particular com a intenção de ser universal.

Quando descreve em Paratodos a linhagem geográfica dos Buarque de Holanda, Chico configura as raízes da formação histórica brasileira (“O meu pai era paulista/ Meu avô pernambucano/ O meu bisavô mineiro/ Meu tataravô baiano”). São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais e Bahia, curiosamente, são os quatro estados que mais interferiram na gênese política, econômica e social do país. O compositor crê na possibilidade de construir uma paisagem brasileira com colagens de eventos privados, depositando o sentido de deslocamento da nação “entre o que virá e não vem, entre o que é tão recente que algo ainda permanece à espera de conclusão, e tão deteriorado que também não conseguiu envelhecer”.

O álbum Construção, de 1971, também consta entre os melhores de Chico Buarque. Nos primeiros meses da década de 70, o compositor retornou ao Brasil após um exílio voluntário na Itália, motivado pelo decreto do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968. Indignado com o clima que reinava no país, agarrou caneta e papel e compôs Apesar de você, descendo o sarrafo no governo de Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), mas com palavras ambíguas, capazes de driblar a censura. Só uma audição muito apurada notaria que os versos não descrevem uma briga de namorados. No entanto, mesmo sob a mira da censura, Chico repetiu o feito, cinco anos depois, com a antológica O que será?, gravada pela primeira vez no disco Meus caros amigos.

Sabemos que a obra de Chico Buarque é das mais completas e complexas da nossa música popular. Ele extrai das melodias “o máximo de rendimento verbal” e sabe aproveitar o melhor dos parceiros, sejam o maestro soberano Tom Jobim, o amigo da família Vinicius de Moraes, ou, ainda, Francis Hime e Edu lobo, seus contemporâneos.

Ler sobre suas músicas só propicia a vontade de ouvi-las mais uma vez e sempre. Aliás, esta pode ser a outra finalidade do livro, cujo projeto gráfico se assemelha à capa de Paratodos, assinada por Gringo Cardia. Em primeiro plano, no disco, está o 3 x 4 de um Chico Buarque bem jovem, fichado pela polícia pelo roubo de um carro. Ao redor, rostos bem brasileiros, de homens e mulheres de idades e traços variados.

O maior ganho deste estudo é a impressão de que as mais férteis criações vêm espontaneamente, através de heranças familiares, da observação do mundo em volta e também de enredos e personagens que podem se desdobrar em novos capítulos e interpretações.

Heloísa Starling relaciona algumas canções de Chico Buarque que, de certo modo, se complementam. Benvinda reaparece, 10 anos adiante, na letra de Tango de covil. Outra canção e Angélica podem citar, na ordem do trágico, a mesma recusa às forças de repressão e de extermínio que a personagem de Ela desatinou instaurou no mundo da festa. Uma terceira canção, Atrás da porta, por sua vez, parece devassar o momento de dor intensa imediatamente anterior a Olhos nos olhos. É o dom de Chico Buarque transpor à partitura visões e sentimentos que pertencem à eternidade.

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