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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

"Precisamos de uma catástrofe no mundo rico"




O mundo rico finge não saber que tem de mudar para fazer face aos problemas ambientais. Só uma tragédia de proporções nunca vistas poderá despertar as consciências, afirma Jonathon Porritt, decano dos "gurus verdes" no Reino Unido. Clique para ler mais sobre a Cimeira de Copenhaga.
Luís M. Faria e Luísa Schmidt (www.expresso.pt)


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Jonathon Porritt
Recentemente esteve em Portugal Jonathon Porritt, uma personalidade que não será exagero descrever como uma das vozes mais importantes entre os chamados 'gurus verdes' britânicos. Há três décadas que vem exercendo uma influência transversal, primeiro como director dos Friends of the Earth, e mais tarde, entre 2000 e 2009, como "chairman" da Comissão para o Desenvolvimento Sustentável no Reino Unido. Os confrontos que nesta última qualidade teve com membros do próprio governo que o nomeara demonstram bem a sua independência. Actualmente as polémicas têm mais a ver com a sua ligação ao Optimum Population Trust, uma organização que defende a limitação de nascimentos. Quanto ao Forum for The Future, outro grupo do qual é fundador e líder, procura associar empresas e comunidades segundo princípios de justiça e sustentabilidade.
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Conferencista num colóquio organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian, Porritt desenvolveu as ideias do seu mais conhecido livro, "Capitalism: As If the World Matters". A sua visão é de uma nova economia, com uma definição de bem-estar que seja compatível com crescimento lento, e não bloqueie as principais virtudes do capitalismo -- em especial o espírito de inovação permanente.
Manifestando entusiasmo pelo "new green deal", Porritt citou o exemplo das "smart grids", que nos EUA começaram a funcionar apenas seis meses após tomada a decisão ("Incrível!", diz). E acha que Copenhaga produzirá forçosamente algum acordo. Não será o acordo ideal, mas será melhor do que nada.
Na sua intervenção, disse que precisávamos de uma catástrofe para fazer mudar qualquer coisa. Suponho que não se tratou de estratégia retórica.
Não. Infelizmente, falei em sentido literal. Encontramo-nos presos numa situação em que as pessoas precisam de negar o que está a acontecer. É demasiado desconfortável o que está a acontecer, e a mudança que se pede à sociedade é demasiado grande. A única maneira de sacudir essa negação é um choque tão profundo e tão doloroso no sistema que não teremos outra escolha senão fazer essas mudanças.
Quando diz choque, não se está a referir a algo como aparece em "The Day After", ou outros filmes do género.
Achei interessante que, quando aconteceu o furacão Katrina, associado como estava às alterações climáticas, houve um grande efeito na América. Mas não durou muito tempo. Claro que estamos a ver estes fenómenos por todo o mundo. A Austrália é o país a observar aqui. Atravessa a maior seca em dez anos. A sua principal área agrícola está a perder produtividade. Os cursos de água estão cinco por cento abaixo do seu nível normal. Tiveram os piores fogos florestais da sua história. As pessoas na Austrália não estão em negação. Podem ver o que acontece, e sabem que têm de mudar. Quando se sofrem choques desse género, nasce um sentido de compromisso.

Acha que o desaparecimento de uma nação inteira, por exemplo uma daquelas nações-ilhas do Pacífico, teria efeito no resto do mundo?
Teria por certo um efeito simbólico. E seria uma enorme traição à nossa responsabilidade para com todas as nações hoje em dia. Quanto a afirmar que seria o tipo de choque ao sistema de que falávamos antes, não sei. As pessoas tornaram-se muito complacentes em relação ao sofrimento dos pequenos estados-ilha. Lamento dizer, mas acho que os choques têm de ser no mundo rico, não no mundo pobre.
Quão prováveis são esses choques no futuro próximo?
Não há dúvida de que algumas das mudanças induzidas pelo clima, em especial extremos de clima, inundações, secas, temperaturas muito altas, fogos florestais, estão a aumentar de ano para ano. A indústria seguradora fez a análise disso num relatório em que mostra como esses eventos estão a aumentar.
De qualquer modo, sempre tivemos fogos, secas, inundações... Acha que isso chega?
São os extremos que vão provocar o choque. A minha impressão é qie estamos muito próximos desse momento. Fogos florestais no sul da Europa, por exemplo, são mais sérios actualmente do que estávamos habituados.
Portanto, paradoxalmente, dada a iminência da catástrofe, acha que podemos estar optimistas?
Acho que sim, porque eventualmente daremos a volta à situação. Usaremos uma combinação de tecnologia, boa economia - baseada no bem-estar em vez do crescimento - e um inquérito mais profundo sobre a natureza da Humanidade para mudar as coisas.
Tem dito que os políticos, nesta matéria, já perderam quarenta e cinco anos. Quer desenvolver?
Começámos a examinar os dados sobre destruição e alterações climáticas nos anos 60. Isso levou à Cimeira da Terra em 1992. Desde então sabemos exactamente o que está a acontecer ao planeta. Podemos ver o dano por nós mesmos. Mas não mudámos a natureza das nossas economias. Continuamos neste ciclo em que olhamos para o crescimento gerado pelo consumo como o veículo para melhorar o padrão material de vida das pessoas. Não podemos fazer isso para nove biliões de pessoas. O planeta entrará sistematicamente em colapso com esse nível de agressão económica. As pessoas têm de aprender a viver nos limites ambientais de que todos dependemos.
Quando fala em público sobre essa nova economia, já alguém o acusou de desejar implantar uma forma de socialismo disfarçado?
Já. (risos). Na América, por exemplo, muita gente associa o desenvolvimento sustentável não apenas ao socialismo, mas ao comunismo. Mas eu não vejo as coisas dessa forma. Vejo, sim, um modo muito mais sofisticado, justo e equitativo de criar riqueza. Se se achar que uma paixão pela justiça social nos torna socialistas, eu admito.
Vêem em si um europeu, logo um socialista.
Bem, algumas pessoas na América pensam de facto que qualquer europeu é por definição um socialista. Não me preocupa muito. Sinceramente, acho que esses rótulos cada vez significam menos.
Quem é que lá representa posições semelhantes às suas?
Há uma pessoa chamada Lester Brown, que dirige um influente 'think tank' há muito tempo. Há empreendedores muito bons, por exemplo Paul Hawkins, que tem escrito imenso sobre os vários modos de criar riqueza. Há arquitectos que têm escrito sobre o design para um mundo diferente. Há muita gente, mas têm talvez menos peso no sistema político.

Os media podiam ser um recurso para criar uma cultura sustentável. Mas vemos que eles próprios se encontram em crise. Os seus proprietários são cada vez menos, e têm inúmeros interesses na economia eles próprios. O jornalismo encontra-se em crise como profissão. Como vê o papel dos média?
Tenho sentimentos mistos. Em muitos aspectos, os media têm sido úteis a gerar uma consciência pública. O tipo de jornalismo que temos na Europa e na América desempenhou um papel importante a mostrar como estes problemas são. Mas há duas questões. Uma, os media continuam a pensar que a ciência não se encontra estabelecida, continuam a procurar equilíbrio ("balance"), aqui uma voz a dizer que as alterações climáticas existem, ali outra a dizer o oposto... Ainda acham que precisam sempre de uma voz dissidente.
A segunda questão tem a ver como os media funcionam na economia actual. Trata-se de empresas grandes, no coração da sociedade capitalista. Os seus interesses directos estão envolvidos na economia como ela existe. Isso é um problema estrutural.
A transição para um modelo sustentável poderá ser feita culturalmente. Implicará uma falta de democracia, com um modelo como o chinês, ou teremos uma quantidade de problemas sociais?
Acho que os problemas sociais serão muito difíceis de resolver. Vamos ter de mudar para uma economia de crescimento lento, pelo menos no mundo rico, pois o mundo pobre precisa de crescimento mais acelerado. Isso levanta vários problemas. Um, como é que pagamos esta gigantesca massa de dívida (uma das razões porque temos uma economia de crescimento rápido é para pagar a dívida)? Outra, como é que financiamos as pensões, etc. E outra, como é que mantemos o compromisso com o pleno emprego, ou tanto emprego como possível. Podemos ter uma economia de baixo crescimento e o nível de inovação que temos hoje em dia? Inovação é o dínamo de uma sociedade capitalista. Podemos mantê-la numa economia de baixo crescimento?
O sistema económico hoje em dia baseia-se na concorrência permanente, entre empresas e entre países. Como é que isso joga com essa perspectiva de uma economia de crescimento lento?
Os governos podem flexionar todos os instrumentos de que dispõem. Há três anos, antes da recessão económica, a China achou que o seu nível de crescimento, a nove e meio por cento, era muito elevado. Estava a gerar uma quantidade excessiva de problemas ecológicos e sociais. Portanto foi decidido apontar antes para um nível de sete e meio por cento. Acreditam?
Já há trabalhos de economistas a estudar esses modelos de nova economia de crescimento lento?
Há muito poucos modelos macroeconómicos alternativos. O único realmente sofisticado foi escrito por um economista chamado Peter Viktor, que fez projeçção económica para o governo canadiano a fim de mostrar como um modelo económico de baixo crescimento pode mesmo assim gerar empregos e segurança, garantir investimentos, etc.
Um dos temas de que falámos ontem, levantado por Lipovetsky quando falou da viciação em consumo, foi a necessidade de encontrar novas formas de vida -- e de felicidade.
Acho que essa é a abordagem correcta. Setenta por cento do produto interno bruto americano vem do consumo. Setenta por cento. Temos de nos afastar disso, se queremos encontrar soluções sustentáveis. Não se pode mudar nada sem mudar as aspirações das pessoas. Na América, cinquenta e cinco por cento das pessoas falam do consumo como a sua actividade recreativa preferida. Acredita? Temos de criar alternativas igualmente aspiracional. E acho que muito disso terá a ver com a abordagem comunitária à regeneração, melhoria do equilíbrio entre trabalho e vida, melhorar oportunidades, passar tempo a fazer as coisas que realmente queremos fazer, em lugar de fazer todas as coisas loucas que é preciso para ganhar o dinheiro para fazer o que queremos. Acho que tudo isso é perfeitamente possível, mas de momento não temos nenhum discurso político convincente sobre porque é que o bem-estar - não falo da felicidade, termo um pouco suspeito - podia tornar-se o veículo de crescente coesão social, crescente segurança comunitária, crescente prosperidade de diferentes tipos, não apenas monetária. Deixámo-nos armadilhar pelo discurso do crescimento económico como o fornecedor de tudo o que a humanidade deseja.
Qual foi o impacto daquele relatório "Prosperity without Growth"?
Teve um grande impacto. Curiosamente, foi o mais descarregado de todos os documentários que a comissão para o desenvolvimento sustentável produziu. Tem sido muito usado por académicos, por funcionários públicos. É uma mensagem difícil de fazer passar, porque as pessoas não gostam de desafiar o crescimento. Mas as companhias começam agora a pensar como podem prosperar numa economia de baixo crescimento. Como se mantém a competitividade mesmo sem manter o crescimento.

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