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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

"O que resta das coisas" Caio Fernando Abreu nasceu setenta anos atrás. Capturas do Face Dau Bastos

Caio Fernando Abreu-sempre, sempre inesquecível!!


Dau Bastos





Caio F Abreu fotopor Estante Virtual






Caio Fernando Abreu nasceu setenta anos atrás. Pra comemorar o fato, Ricardo Barberena teve a excelente ideia de pedir narrativas curtas a vários autores contemporâneos, com as quais organizou o livro "O que resta das coisas", a ser lançado em breve.
Segue o conto que escrevi pra coletânea, evidentemente narrado e protagonizado pelo próprio Caio.


A VIAGEM DA BOINA
Nem o assento da frente comporta direito minhas “pernas longas, de gaúcho”, conforme disse Paulinho, antes de propor que Iva e Neca se acomodassem atrás. As duas até acharam bom, pois a muvuca lhes permite continuar trocando olhares cúmplices, invariavelmente seguidos de gargalhadas, como se cada meandro de mundo fosse um espetáculo divertidíssimo.
Paulinho tá na mesma vibe, ainda que a função de chofer o obrigue a dividir a atenção, já um tanto comprometida pela miopia vermelha que se avista por trás das lentes dos óculos, com o que acontece além do para-brisa. Embalado apenas por dois conhaques, me limito a sorrir de leve, dizendo pra mim mesmo que, na carência em que me encontro, não tenho direito algum de achar os três abobalhados.
Neca paparica seu velho gravador e cobre de elogios a fita-cassete que preparou especialmente pra viagens, agora a oferecer, a uma altura que possibilita conversa, o estribilho iniciado com “I can’t get no satisfaction”, reproduzido, no todo ou em parte, por cada um de nós. Paulinho garante que não perderá nem a pau o show dos Rolling Stones, programado pro próximo mês, conforme anunciam outdoors espalhados por toda a cidade.
Passados alguns segundos, lembro do recente surto de bandas de roque nacionais e comento que Mick Jagger se organizou pra vir aos trópicos por necessidade de aprender com seus colegas brasileiros. Reagindo à minha ironia com maldade, Iva dispara que a literatura só tem final infeliz porque os autores são todos rancorosos. Os três soltam um riso tão esporrento que temo ver o fusca escorregar nos trilhos e se esborrachar nalgum poste.
O pior é me sentir sobrando numa excursão sem sentido. Afinal, trocar Santa Teresa por Mirantão é quase uma redundância. Comparado ao deserto que enfrento cotidianamente em Sampa, o bairro do bonde figura de oásis. Sobretudo na parte alta, já grudada à floresta, onde uma ex-socialite tão dura e decadente que se autonomeia “massa falida” me alugou um dos cômodos da vivenda oitocentista herdada da família.
Cheguei lá depois de fechar uma nova leva de contos, quando o desgaste de mais esse parto me fez chorar por um bom tempo, ao fim do qual decidi me afastar um pouco de tudo o que tinha me cercado durante a escrita. Passados cinco dias descendo a pé a comprida Almirante Alexandrino – pra finalmente tomar a Aarão Reis e dar no Bar do Gomes ou esticar até a Ladeira da Misericórdia e desaguar na Lapa –, aceitei com entusiasmo o convite, feito na irresponsabilidade das quatro da manhã, pelo trio, mais conhecido que amigo, com que findava a noitada.
– Quase ninguém vai lá! – Paulinho fechou os olhos, já mínimos, pra antever o éden.
– Gosto de Mauá e Maromba, mas visual é Mirantão! – Neca enfatizou.
– Sempre que fui, quis virar local! – Iva elevou a lisonja ao ápice.
Também tomado pela ideia de que a felicidade tá sempre longe de onde nos achamos, confirmei que achava maravilhoso conhecer Mirantão, pelo que me diziam, ideal pra gente se concentrar em trabalhos de fôlego, a exemplo do romance pra cujo enfrentamento começava a me preparar. Já agora, encarava o final de semana que planejávamos ali como possibilidade de usar a água fria de poços e cachoeiras pra reavivar meu corpo, mortificado pelo acorrentamento de meses à máquina de escrever. Primeiro, redigia baboseiras pra pagar as contas; na segunda etapa da jornada, sofria com os personagens de mais uma narrativa, que evidentemente precisava ser tão curta quanto aquelas, únicas, que o monge Machado conseguia produzir em períodos de muito trabalho na repartição. Os quatro copos se encontraram no ar, como se nos conhecêssemos desde a primeira infância e celebrássemos a oportunidade de resgatar o passado em passeio ao paraíso.
Acordei lá pelas três da tarde e, em regalo com que brinco de me acariocar, continuei na cama. Vezenquando recordava com certo incômodo a combinação nada a ver de me despencar pro mato. Na tentativa de me acalmar, recorri à estatística, que eu próprio havia desenvolvido, segundo a qual mais da metade dos compromissos assumidos no Rio é furada. Projeto concebido durante saideira no Bar Goiabeira, então, é que ninguém leva a sério mesmo. Àquela altura, nenhum dos três devia lembrar sequer de minha existência.
Quieto, em meu canto, esquecido de todos, queria era repassar mentalmente os contos entregues ao editor, que, convencido de que meu jeito jeans fará muito bem à sua exitosa coleção de bolso, praticamente os arrancou de minhas mãos. Desde então, tento verificar se de fato me agradam, se são o máximo que poderia colocar em circulação depois dos trinta anos, se fazem sentido juntos. Luto sobretudo pra banir a impressão de que falta uma última peça: algumas poucas laudas que, ao demonstrarem magnetismo entre polos aparentemente opostos, ajudem a atenuar o derrotismo do conjunto.
Pra me acalmar um pouco, lembrei do tom categórico com que o editor havia dito que os sentimentos de insuficiência, oco e vazio andarão sempre comigo, mas jamais comprometerão aquilo que escrevo. “Ao contrário: são o adubo de sua prosa!” Na hora, tive vontade de rir de sua pretensa esperteza, que, no entanto, me servia de apoio durante a rememoração.
Quanto mais observava o telhado musgoso do velho casarão, mais constatava que os enredos variam em cenário, mas se unificam pelo desespero, pesado a ponto de transformar tudo em declive. A divisão da coletânea em duas partes parece ajudar no arejamento, em malabarismo arquitetônico que apenas acentua o encaminhamento pro despenhadeiro.
Na contramão, em movimento sinuoso, quixotesco, que não cura ninguém de nada, nem mesmo de dor de cotovelo, mas é percebido pelos poucos leitores que realmente me interessam, sobressai o resultado de um esforço estafante. Pra mim, escrever é quebrar toda a matéria-prima feito cabra-cega, acariciar os cacos até sentir os dedos sangrarem e, depois de descartar as partes imprestáveis, valer-me da legitimidade dos insatisfeitos crônicos pra usar as escolhidas na criação de estranhices.
Leminski, filho temporão de Oswald, portanto hábil criador de neologismo ferino, anda rindo de escrito esquerdofrênico já não encontrar mercado. Será que agora os críticos me respeitarão de verdade? Alguns certamente dirão que nem a abertura política reduziu o umbigo e o frufru de certos desbundados... Mas as autocríticas dos ex-exilados fazem as acusações de alienação (como aquelas que atingiram a amantíssima Clarice alguns anos atrás) parecerem a mais stalinista das patrulhas. Mesmo que sejam mais jornalísticos que literários, os depoimentos dos ex-guerrilheiros hão de contribuir, ainda que involuntariamente, pro resgate da prosa má-moça, danada, sem pose nem serventia.
Só não posso querer que gente como Hilda e eu conquiste o grande público. É possível que aumente o número de convites pra feiras e festas, onde sempre se formam plateias fissuradas pelas extravagâncias que não ousam praticar. Quanto menos entendem, mais apreciam! Chocadas com as bizarrices dos loucos da língua, agradecem pelo imenso prazer de se sentirem normais aplaudindo entusiasticamente, em uso ultra hábil das mesmas mãos que jamais aprenderão a abrir livro experimental. Thriller, policial, fantástico, vá lá. Agora, poesia sem aspecto de autoajuda e narrativa sem jeito de folhetim, nem pensar.
Tava eu assim, resolvido e resignado a ponto de sentir minha comprida carcaça disposta a finalmente levantar da cama e sair pruma boa badalada, quando fui surpreendido por gargalhadas familiares na sala principal, amigável troca de palavras com minha anfitriã e, logo em seguida, sempre ao som de riso desbragado, batidas na carcomida porta de meu quarto. Que queria o trio, se já tava escuro? Retomar a farra de ontem?
– Tá pronto? – Iva gritou do lado de fora.
– A gente acordou antes do meio-dia, mas precisou da tarde toda pra conseguir se arrumar... – Neca exagerou e, como se a dificuldade de organização dos três contivesse uma engraçadíssima pitada de contestação ao sistema, arrastou os outros dois ainda mais no riso.
– É melhor assim, que o fusquete só se sente à vontade quando o sol vai embora... – A insinuação de que o carro ficaria na primeira blitz que aparecesse coroou o destrambelho.
Aborrecido com tanta besteira, cogitei seriamente de responder que sou desses que veem inteligência na tristeza. Também poderia alegar indisposição. O importante era me livrar dos três. Mas acabei concluindo que, como tudo o mais, a estada em Santa tendia a cair na rotina e, mesmo que o pulo a Mirantão se revelasse um perrengue, reacenderia a vontade de subir até a Estrada das Paineiras, pra admirar o Jardim Botânico, a Lagoa Rodrigo de Freitas e Ipanema a partir das alturas.
Além do mais, os três nem de longe eram as pessoas mais interessantes da galáxia, mas ao menos demonstravam algum compromisso comigo. Gritei que precisava apenas de um minutinho e, enquanto jogava umas peças de roupa na mochila, preparei o espírito pro reencontro emborcando duas doses do líquido endiabrado da garrafa sobre a mesa de cabeceira.
Prestes a abrir a porta, dei uma última olhada no espelho embaçado acima da pia e avistei uma cara barbuda, pela qual o cabelo se derramava sedoso, necessitado de algo que lhe mantivesse a elegância mesmo on the road. Ri como se fizesse uma grande descoberta, quando jamais tomaria a estrada sem a boina azul com que agrego à minha imagem um toque de Che, reconhecido, por quem ousa encarar os dois poços escuros que me servem de olhos, como sendo não de dureza, e sim de ternura.
Agora seguro a boina firmemente com a mão direita e estico a cabeça pra fora do veículo feito sulista que precisasse de toda a umidade que emana da Floresta da Tijuca durante o inverno; ou mochileiro das antigas, a expor seu rodado rosto às carícias, sempre inéditas, do vento. Na verdade, tento escapar um pouco à estridência dos gritos de “’Cause I try and I try and I try and I try” dos parceiros de trip, sobretudo de Iva e Neca, que alisam Paulinho, em indício de que o feriadão faz parte de um plano de combinar ménage à trois e lua de mel. Movimento os lábios pra fingir que os acompanho no canto e alargo minhas magras bochechas pra esboçar sorriso, mas tenho consciência de que a única mônada aqui sou eu.
Paulinho retribui os agrados de ambas retirando as mãos alternadamente da direção, mas ao menos tem a sensatez de reduzir a velocidade do automóvel. Cachos desgrenhados, barba descuidada, bata branca puída, cinto de pano colorido a segurar calças vermelhas e tênis sujos a se movimentarem entre acelerador, embreagem e freio – tudo parece ingrediente de composição de estereótipo. Penso, com amargura, que o criticismo virginiano amplia continuamente minha distância em relação até mesmo às pessoas com quem tenho bastante em comum, sem que eu me sinta melhor que ninguém em nada.
Paulinho me lança um olhar constrangido, pedindo desculpas de a situação deixar claríssimo que é mais um desses héteros que, nos últimos tempos, se sentem culpados com o tratamento que recebemos. Quais paladinos, fazem questão de travar amizade, desfilar a nosso lado, nos defender de qualquer ameaça, chegando, em conversas mais íntimas ou emocionadas, a desmunhecar. Entretanto, ao menor afago de fêmea, são devolvidos, como que por feitiço, à armadura original, o que reduz o achegamento em relação a nosotros a uma solidariedade que, em certas situações, fere e ofende. Escaldado com pintas assim, tomei minhas cautelas em relação à maciez do riponguinha, a quem agora posso responder com um franzir de lábios com o qual digo bem mais do que se desse de ombros.
DJ tarimbada e exímia conhecedora da área, Neca consegue a proeza de baixar o som, mexer habilmente nas teclas do gravador e, no momento em que o volks substitui o ronco das marchas de força pelo chacoalhar da descida de paralelepípedos que une Santa ao Cosme Velho, faz a gente ouvir, a toda altura, “like a rolling stone”. Eu próprio solto a voz, em recorrência ao trecho como síntese de minha solitária e desenraizada existência. Olhamos uns pros outros aliviados de finalmente formarmos quarteto. Não fazemos a menor ideia do que o futuro reserva a cada um, muito menos dos rumos de nosso flagelado país, mas ao menos neste instante, efêmero que seja, curtimos uma deliciosa epifania.
– Sujou! – Paulinho berra de repente. – Vai, Neca! Rápido! Desliga esse troço!
Bob Dylan é substituído instantaneamente pelo alarido dos três, que, em troca abrupta da hilaridade pela paúra, têm certeza de que serão arrastados pelos cabelos, metidos em masmorras e torturados pelos muitos meganhas a formarem uma barreira altamente armada na frente da mansão de Roberto Marinho, certamente a oferecer jantar pra decidir, em companhia de um punhado de generais e empresários, o que acontecerá a toda a nação de agora em diante. Ainda que jamais escape à sensação de suspeito, não tenho nada que possa se associar a flagrante, portanto, em vez de temer o xilindró, sofro é de ser confrontado com minha condição de dependente de frilas pra editoras e periódicos dedicados a publicar porcaria.
A mídia marrom, então, que podre. E eu, revolucionário dos costumes, superinquieto, hiperquestionador, com o indicador frequentemente em riste, a usar minha metralhadora imaginária pra combater todos os opressores do universo, inclusive os ditos de esquerda que se permitem ser machistas, vivo reduzindo a balbucios e cochichos as raras críticas que ouso fazer aos donos dos grandes meios de comunicação. As portas dos poucos diários, hebdomadários e mensários de peso precisam se manter abertas, sob pena de a modéstia virar miséria, penúria, morte de fome. Vendido, eis o que sou!
– Se eu for, babau! – Paulinho pondera. – Vão sacar a inhaca no
ato, descobrir o bagulho e levar everybody em cana!
Seis olhos encarnados se voltam pra mim, eleito, por aclamação muda e suplicante, pra apresentar a comprometedora mala do fusca aos brucutus. Penso seriamente em mandar o trio à merda, saltar, informar aos milicos que apenas pegava carona e usar minhas “pernas longas, de gaúcho”, pra seguir calçada afora, muito cidadão, rumo a Laranjeiras. O problema é que minha mochila tá misturada às deles e tem, entre as provas de que me pertence, o bloco em que anoto ideias pro tal romance. Como os demais livros, o novel demorará anos até ficar pronto; mas preciso rabiscá-lo com urgência, pra me convencer de que as cento e tantas laudas prestes a ser diagramadas realmente formam um todo coeso e já fazem parte do passado.
Do nada, baixa um pensamento que outrora chamariam de inspiração: a mim, muito mais interessado em história do que em História, essa víbora chamada vida oferece a oportunidade de ganhar uma estampa capaz de render o suficiente pra me livrar da escravidão dos bicos. Parta dali em camburão ou viatura do Exército, empregarei os tempos de cárcere no engendramento de um relato com início mais ou menos assim:
"Como dizem os especialistas, o dito Império do Brasil não passou de reinadozinho pusilânime, periférico e sem qualquer poder de influência fora de seu território dilatado, porém brenhoso. Nem por isso se pode dizer que o país não tem imperador: onipresente, a manter sob rédeas curtas a atenção de cada compatriota, há décadas um verdadeiro déspota atravessa incólume as variações de governo e até de regime. Minha desgraça consistiu em passar em sua porta justamente na noite hibernal em que se ajustava o discurso com que os mandantes de sempre disseminariam a ideia de retorno à democracia..."
Com um início assim, eu ganharia a simpatia de companheiras e companheiros, que fariam um boca a boca capaz de animar as livrarias. Agora, o que realmente transformaria o livro em best-seller seria seu deslocamento do espaço nada visitado das resenhas pras páginas policiais e políticas. O assunto despertaria o interesse mesmo de quem detesta literatura, que eu teria o cuidado de seduzir, ao oferecer um entrecho cheio de peripécias e emoções, colocado em capítulos breves, feitos de parágrafos de poucas linhas e pródigos em diálogos.
Inabaláveis, as próprias Organizações Globo, cujo sucesso depende da canibalização generalizada, abririam espaço nas mídias impressa e eletrônica pro fenômeno de vendas. Submetidas a copidesque cioso, as notícias sobre a obra a despiriam completamente do caráter de denúncia. Aos poucos, cristalizariam a ideia de que o suposto imperador é da linhagem democrática e esclarecida de Dom Pedro II.
Seja como for, alguém precisa negociar com os homens, que começam a se aproximar em forma de cinturão, a deixarem claro, com a simples expressão do rosto, que jamais acreditariam na limpeza de uma lata lotada de jovens de aparência duvidosa. Neca bate em meu ombro direito com a delicadeza de quem roga, Iva afunda no banco traseiro e Paulinho segura o volante com força pra dissimular a tremedeira. A paranoia os leva a perder completamente a dignidade diante do perigo. Igualmente nervoso, amasso a boina contra a cabeça na esperança de ganhar o que me falta de coragem, abro a porta com o máximo de calma que consigo, desço de um modo que não levante qualquer suspeita de que esboço reação e dou um boa noite alto o suficiente pra convidá-los a tratar comigo.
Acostumados com a rotina de abordar primeiramente o motorista, os fardados hesitam um pouco sobre o que fazer, mas um oficial posicionado a certa distância faz um sinal de cabeça pro sargento, que se adianta pra me acompanhar pessoalmente na temida inspeção. Abro o capô e ouço o rangido da tampa como indício de que nos daremos muito mal. Inclino-me solícito e humilde, certo de que sairei da revista já algemado.
Ao sentir o corpo do sargento alinhado com o meu, penso em elogiá-lo pela conquista das três linhas da divisa, mas contenho o ímpeto a tempo, pois a luz de sua lanterna deixa ver uma bagagem tão esculhambada que qualquer puxada de papo, principalmente idiota, ainda mais com bafo de conhaque, passaria por tentativa de ludibriar. Ele apalpa todas as mochilas pra fazer o reconhecimento prévio do terreno, mas, em vez de abri-las de imediato, vira o rosto levemente pro meu lado e me perscruta da cintura até a boina, na qual se detém. Deve compará-la, toda achatada, ao quepe verde-oliva que tem garbosamente na cabeça. As etiquetas “comunista”, “maconheiro” e “viado” certamente pipocam em seu cérebro. Preparo-me pra receber os insultos de sempre, quem sabe até uns tapas.
Entretanto, não sinto animosidade ou sequer energia ruim da parte dele. Fico pasmo de vê-lo esboçar um leve sorriso que lhe permite mostrar, apenas pra mim, o bom estado dos dentes tratados pelo Exército. Finalmente começa a abrir as mochilas e, ao lançar o facho da lanterna no interior da primeira, já sussurra que tá tranquilo, pois a ordem é de procurarem apenas armas. Remata a gentileza perguntando se minha boina, assim espalhada, é sinal de que sou pintor.
– Não, de cabeludo mesmo... – gaguejo e já me amaldiçoo, por reagir de maneira tão imatura quanto o trio, a esta altura certamente roendo unha. – Na verdade, sou escritor.
– Eu sabia que era artista... Um dia também sonhei em ser um... Até hoje guardo a guitarra que meu pai me deu antes de enfartar...
Suspira tão fundo que sinto dó de nós dois e, talvez devido aos muitos abalos dos últimos tempos, preciso lutar pra não cair no pranto. Se ele parece frustrado, morro de medo de a necessidade de pagar contas ou a fatalidade me impedirem de botar pra fora toda a ficção que intuo dentro de mim.
Mas lanço um olhar de esguelha e, ao ler seu nome no uniforme, acho uma graça tal que me imagino correndo até o primeiro orelhão, pra implorar ao editor que segure os originais na fase de preparo. Em menos de uma semana, tomarei um ônibus noturno e, na manhã seguinte, lhe entregarei o texto que falta ao novo livro.
– Sargento Garcia, com todo o respeito, acho que nosso encontro vai virar conto...
– Prefiro romance...
FIM

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