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quinta-feira, 10 de maio de 2018

A poesia atual de Maria do Carmo Barreto Campelo de Melo






Maria do Carmo b. campelopor wikipédia





* Por Paulo Vasconcelos *
Escrevo por fora da palavra
circundo-a como uma ilha.
Tento abordá-la.
Chamo meu próprio nome e estremeço: tenho medo de mim
Que me descubro.
O nome me adere
Me exige 
(Sempre Poesia, Obras Completas, Maria do Carmo Campelo de Melo, 2009)
Sempre se falou da qualidade dos poetas pernambucanos, dentro das chamadas gerações poéticas brasileiras, (classificação que não me atrai muito). Entretanto, Maria do Carmo Campelo de Melo (1924-2008) não se coaduna a isso, nem acataria a designação. Ela está acima disso e equivocaria teóricos.  Sua poesia é de uma atualidade abismal e ela buscou uma escrita de tons existenciais, com o tônus de uma lírica aberta, sem formas clássicas, sendo assim uma palavra de força no território da poética moderna. Esquecida pelo mundo editorial brasileiro, o que é um atentado aos leitores de poesia, suas obras, quando em vida, tinham requinte de edição em todos os aspectos.
Ao lermos Maria do Carmo, sentimos os sabores próximos a um caqui duro de Orides Fontela, aos ventos de Cecília Meireles, os cheiros das terras de Clarice ou das rabanadas de Adélia Prado. Isso se dá no conteúdo. Quanto à forma, ela tem suas particularidades em que  adensando a força da palavra faz uma lírica franciscana – simples, mas exata.
Conheci a poeta num auditório, Recife, nos anos de 1980, em que falava para estudantes e eu não sabia de sua poesia; passei a ler e encantei-me com seu ruído ensurdecido, mas abalador de perguntas e constatações do sujeito na tessitura do viver.
Seu  verso – que me acudia com persistência – era:
 Quem me virá ao encontro/agora que sou EU – eu me escolhendo, eu me sabendo
com a lucidez dos anjos, eu questionando-me/entre o temor de ser e o de não-ser
eu me enlaçando e no projeto de ser me elaborando?/De que surdos gritos me componho
ou nítidos contornos me estruturo/em que pretérita – habito no futuro?
E assim recuo/E ambígua permaneço
Nas Vésperas de mim: não me inauguro.
(Retrato Abstrato, 1990)
Suas obras que de início me ocupei foram: Partitura sem Som (1983) e Retrato Abstrato(1990). Depois vieram as demais, que leio com encantamento maior. Ficou para sempre em meus ouvidos uma lírica que jamais me desacompanha, mesmo com a sua mudez de morte.
Maria do Carmo é um estampido, um pássaro fundo e está entre as mais importantes poetisas pernambucanas e brasileiras. Nasceu em Recife,1924, no bairro da Torre, mas voou para o Rio. Lá, manteve contato com Bandeira, Drummond e outros. Não demorou e logo retornou para cumprir a flechada de ser palavra em Recife, onde morreu em 2008.
Bacharel em Letras Clássicas e Licenciada em Didática de Letras Clássicas pela Faculdade de Filosofia do Recife – local que gerou outros poetas –, pós-graduou-se pela UFPE. Mantinha uma vida dinâmica no campo literário do Recife, atuando como palestrante, professora, gestora nas áreas de artes em geral.
Atuou como jornalista, mas seus gritos foram para o poema, em que soletra e deglute palavras com a maçaroca do sabor da língua em que plenificou sua garganta lírica.
Pertenceu à Academia Pernambucana de Letras, onde ocupou a cadeira nº 29, e, mesmo diante do institucional acadêmico, não se rendeu à simplicidade e seu traço poético simples e denso.
Saltear às vezes entre o religioso e o profano, mas se interligando de modo pleno, como que abjurando, não para as diferenças, seu olhar religioso católico não tornou-a piegas, ao contrário, criou uma liturgia lírica acima disto.
Sua obra é grande e compreende doze livros de poesia, afora outros de prosa. Se a persistência foi na poesia e na prosa, trafegou também pelo jornalismo, em que se descolou bem de sua textualidade.
Dentro de sua obra, alguns aspectos se cindem como elemento comum, o que,  ao meu ver, está em relação à inquirição do poeta ao existencial, à dramaturgia do dia a dia, do homem à procura de si e do outro, com o comedimento poético e linguístico exato, sua lírica tem um fluxo epifânico constante:
Solidões não se somam
bem sabes
apenas ficam lado a lado.
E outra vez diz ela:
Isso que vedes,/não sou Eu
só me antecede/me prepara/que vária e inconclusa
subsisto/e solitária assisto
às muitas mortes de mim.
Isso que vedes/não sou Eu.
…persiste a poeta:
Ambígua e indefinida
transbordo do meu nome:
ele não me contém

ninguém é igual a toda mim.
(Sempre Poesia, 2009)
Há em Maria do Carmo algo de persistente dentro do seu “limite e deslimite”, como se a poesia a “dessufocasse”, ou melhor, o fazia para aliviar-se e nisto constitui sua poesia  renitente, o que nos confirma a própria:
Sou sempre poesia. Continuarei buscando uma linguagem própria através da qual possa cumprir a missão de poeta-decodificar a mensagem muda, o âmago e o labirinto do ser, recriando-o na medida em que o redefine…” (Sempre Poesia, 2009)
Entre os amigos, poetas e intelectuais pernambucanos, não tinha afetações da mulher poeta, nem vômitos intelectuais, dentro da sua grandeza de leitora e admiradora de tantos: Pablo Neruda, Virginia Wolf, Sergio Milliet e do persistente Rainer Maria Rilke.
Estudiosa da Semiótica, face ao campo das letras, tem um poema com o título Semiologia:
Só direi palavras essenciais/o amor é meu conhecimento,/transporei todas as demarcações;/e a sebe de teu jardim/tua armadura de carne.
(Sempre Poesia, Obras Completas 2009)
 Em outro poema, diz ela atraindo palavras para a dramática de ser, e aí se vê de perto o criar e a filosofia, quando a poeta, fincando sua pesquisa estético-poética, fuça o semiológico:
Só às cinco estarei completa./Até lá tento compor-me/e metamorfoses me refaço/Do sempre/e no agora/me elaboro/e nessa trama (em que me tecendo)/me sucedo me componho me transmudo me retraço? Até lá me sobreponho para /hora inaugural? /mas só às cinco estarei completa.
(Ser em Trânsito 1979)
A poetisa lança seu olhar sobre a filosofia, nas suas bases de formação da Faculdade de Filosofia, redizendo Heidegger, Bachelard (nos seus aforismos da Casa), ou, nessa escuta/escrita, como confirma Deleuze nas relações entre a linguagem e a Filosofia.
Confirmando o que se constata, afirmou o poeta Ângelo Monteiro, recifense, em prefácio a sua obra Música do Silêncio II:
A preocupação pela poética vem aliada, nela, a uma preocupação pelo fundamento de toda poética: a própria existencialidade, que anima e a justifica, da qual se nutre e vive Palavra.
(Música do Silêncio 1971)
Ana Flavia Campello de Mello, sua neta, num esforço único, conseguiu, há sete anos, em 2009, reunir suas obras em Sempre Poesia, em que reúne um vasto material sobre a autora com a totalidade de suas obras. Trabalho exaustivo, valeu sim, mas vale reeditar a poetisa com o rigor maior editorial que ela merece e com depoimentos de tantos poetas contemporâneos. A autora merece e nós, que a conhecíamos, pedimos.
*
Paulo Vasconcelos é mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial da área de Literatura, além de contista e poeta

terça-feira, 8 de maio de 2018

DEFENDO O VALE-TUDO NA LÍNGUA E AÇÃO- CAPTURAS DO FACE




NADA MAIS A FALAR É ISTO MESMO!!!!!!
Carlos Eduardo Marcos Bonfá
21 h
A partir de hoje, quando me chamarem de defensor do vale-tudo vou dizer que sim, defendo o vale-tudo na língua. Se a elite reacionária, escravocrata e genocida se vale de tudo o que tem para não ceder um milímetro de sua riqueza obscena, e isso inclui evidentemente sua forma de usar a língua, ao lado dos golpes de Estado, das arbitrariedades judiciais e do uso explícito das armas de fogo contra o povo e seus verdadeiros representantes, não tem por que exigir dos oprimidos nenhum tipo de adequação, muito menos linguística.
Toda e qualquer maneira de falar vale ouro na luta contra o fascismo! (Marcos Bagno)

“Não tenho medo da ‘República de Curitiba’, mas da que matou Marielle” C.Tezza Lança livro -irônico título A Tirania do Amor


Capa do novo livro
Foto Divulgação Ed .Todavia
Em novo romance, publicado pela Todavia, Cristovão Tezza entrelaça a crise do Brasil com a crise pessoal de seu protagonista. A Tirania do Amor

Cristovão Tezza comete equívocos em sua entrevista mostrando o ambíguo ,do seu lado politico, que nao põe a cabeça pra fora do muro,além do que tenho ressalvas a algumas de suas obras,não o vejo com o destaque que a crítica em geral lhe confere.Em matéria da Carta Capital https://bit.ly/2KGXLhR Rosane Pavan é excelente ao detectar a ambiguidade do autor: ao comentar sua obra O Professor :
"Ambíguo, Tezza cria um personagem para explicitar a ambiguidade. Ela é uma estudante estrangeira, Therèze, cujo erro na acentuação no nome torna intensa sua aproximação com o protagonista, o filólogo Heliseu. O professor tem 70 anos, sua ex-mulher dedica-se a outros amores e o filho o rejeita. Sua vida, aquela que ele viveu errado, agora perde intensidade, exceto por um fato que, à moda de Albert Camus, o colocará existencialmente à prova. Ele precisa de sanidade para receber uma homenagem acadêmica, fato que o livro explorará como mote."
Tal ambiguidade é uma  das suas caraterísticas suas, pelo menos para mim, ao ler suas obras .O filho  Eterno , sua obra de grande sucesso, acho uma obra comum com  um memorialismo claro,  mas se fora antes, como acusaram José Lins seria disparate,mas mercado é mercado, editora é editora.Todavia ,vale o público conferir.

Trechos da entrevista El País por André Oliveira:
https://bit.ly/2KHOtlG

“Não tenho medo da ‘República de Curitiba’, mas da que matou Marielle”

Verdadeira calculadora ambulante, Otávio Espinhosa, protagonista do novo romance de Cristóvão Tezza, A Tirania do Amor, publicado pela Todavia, não sabe explicar como, mas desde pequeno consegue solucionar qualquer equação de cabeça. Extrai as raízes quadradas mais impensáveis, faz multiplicações altíssimas e divide números indivisíveis. O talento genial fez com que o pai lhe chamasse a infância inteira de “meu Mozart” e, apesar de uma criação algo turbulenta, parecia, realmente, destinado a um futuro estelar. Sua nascente carreira acadêmica de economista, contudo, foi abortada após uma primeira recusa da banca avaliadora de doutorado. Fato que o fez trocar sua tese “Os Funcionários da Coroa” por “A Matemática da Vida”, um livro de autoajuda que escreveu sob pseudônimo, meio na brincadeira, mas que atingiu relativo sucesso. Passados alguns anos, o leitor o encontra em uma manhã, aos 56 anos, enquanto divaga sobre a possibilidade de um voto de abstêmia sexual depois de descobrir que seu casamento acabou.



Para o protagonista do novo romance, é um momento de crise em que sua história profissional e pessoal se desfaz no curso de 24 horas. A separação iminente do personagem, a descoberta de que era traído por sua mulher, mãe de seus dois filhos, as lembranças sobre sua formação, entremeiam-se com outra crise, a brasileira, vivida no poder, mas também no cotidiano. No talvez pior dia de sua vida, Espinhosa encontra seu trabalho, uma consultoria financeira, sacudido por uma operação policial. Assim, o retrato que emerge do livro é atualíssimo, mas específico: são duas crises, pessoal e do país, sentidas na pele da elite econômica e social do Brasil. Na entrevista abaixo, Cristóvão Tezza, um dos escritores brasileiros mais premiados da atualidade, autor, entre outros, de O Filho Eterno – em que narra a história, comum ao próprio autor de um pai e seu filho com síndrome de Down –, fala sobre a trama e o pano de fundo do novo romance.
Pergunta. Há um frescor muito forte no livro, como é trabalhar ficcionalmente com acontecimentos tão recentes da realidade brasileira?
Resposta. O romance é um gênero que não teme o que é imediatamente contemporâneo, a vida concreta em torno, nem suas referências sociais, políticas, culturais. Como escritor, nunca tive problemas em tratar de fatos da vida brasileira. O perigo é a linguagem resvalar ou para o panfleto (em que o narrador diz a “verdade”) ou para o ensaio, em que se pretende demonstrar uma tese qualquer, o que é chatíssimo. A ficção não é nada disso; ela é uma hipótese de existência. Eu queria trabalhar em torno do ano de 2017, do clima brasileiro do momento, mas sem mergulhar na polarização mecânica que nos marcou. É um dia na vida do Otávio Espinhosa, o personagem central, mas as referências históricas que aparecem são de diferentes momentos do ano – não marquei um dia exato. Ao mesmo tempo, ficcionalizei as referências, de modo a não datá-las. O que me interessava como pano de fundo era a atmosfera do país. Mas o centro literário são sempre as pessoas, não os fatos. É a cabeça do Otávio que interessa à narração.
P. A realidade política do Brasil tem sido tão turbulenta que não deixa escapatórias nem para o romancista?
R. Todas as pessoas vivem o tempo todo imersas na realidade em torno; somos parte dela, não espectadores distantes. Otávio é um economista brilhante de uma importante financeira vivendo um dia de crise pessoal e de crise profissional. Impossível falar dele sem falar da realidade política e social. Mas o centro narrativo está nele, no seu olhar para o mundo. No romance ele está obviamente muito mais preocupado com as consequências da separação da mulher, com os problemas do filho e a eventual perda do emprego do que com a queda do presidente ou com o destino do Brasil. Mas tudo ressoa na sua cabeça.
P. No seu último romance, A Tradutora, você tinha trabalhado uma personagem feminina. Neste, o protagonista, quase narrador, é um matemático, lógico, racionalíssimo, algo cínico, talvez. Como foi lidar com Otávio Espinhosa?
R. Quando começo um romance, nunca sei exatamente o que vou escrever. Começo com a criação de um personagem em uma situação específica, sempre bastante visual (Otávio caminhando para o trabalho de manhã, depois de descobrir algo que vai detonar seu casamento), um ponto de vista (neste caso, um narrador que sabe apenas o que o Otávio sabe), e o ato de escrever vai criando ramificações biográficas e emocionais. A primeira ideia era escrever sobre um economista que tinha escrito, quase que de brincadeira, um livro de autoajuda, “A Matemática da Vida” (que era o título original do romance), e uma narrativa que pegasse o clima do Brasil de hoje. Daí para a frente, a inspiração e a intuição foram tomando conta. Eu quis dar algum lastro acadêmico a ele, mas também a frustração pessoal nesta área. Enfim, vou escrevendo pelo “faro narrativo”, digamos assim.

Pagamos o preço da nossa arcaica tradição rural, em que uma elite cultural urbanizada, em torno de 20% da população, se tanto, observava a imobilidade dos 80% restantes, para os quais se elaboravam teorias explicadoras ou supostamente libertadoras

P. Do romance, sai um quadro da elite econômica e social do país: branca, que se assusta e se constrange na presença de negros, que vive entre catracas giratórias, que educa os filhos com cortes e aumentos de mesada. Você acredita que a classe média e classe média alta brasileira vivem desconectadas de seu próprio país?
R. Acho que em boa medida, sim. Imagino que pagamos o preço da nossa arcaica tradição rural, em que uma elite cultural urbanizada, em torno de 20% da população, se tanto, observava a imobilidade dos 80% restantes, para os quais se elaboravam teorias explicadoras ou supostamente libertadoras. A agressiva urbanização do país dos últimos 40 ou 50 anos, o inchaço das cidades, o aumento geométrico da violência, mais o advento da internet e a modernização capitalista, tudo isso mudou radicalmente as referências. É como se um Brasil real, duro de engolir, viesse subitamente à tona. O arsenal teórico, político e cultural de que dispõem a esquerda e a direita para darem conta do estrago parece miseravelmente pobre, limitado, tacanho. Mas já fui mais pessimista; apesar desta angustiante desconexão, pode-se dizer do Brasil real o que Galileu disse dos planetas: E pur si muove. Temos o caso único de um país praticamente sem governo que, no entanto, para nossa felicidade, mantém suas instituições com relativa solidez. Não parece, mas isso é uma dádiva. Pelo menos para quem cresceu e viveu durante os anos da ditadura, como eu.
P. O Espinhosa é alguém que se quer muito racional em meio ao caos da vida pessoal e nacional. Não é esse um pouco o quadro atual do Brasil: um discurso frio, supostamente amparado na lei, racional, e, do outro lado, uma realidade caótica, emocional?
R. Acho que isso é inescapável. Por natureza, o Estado é gelado, uma gigantesca abstração jurídica, em que podemos ver tanto o horror incompreensível do processo de Kafka até o monstro devorador, o Leviatã absolutista preconizado por Hobbes. Entretanto, sem ele a complexidade do mundo moderno é insustentável ou inviável. Pensando simplesmente, o Estado é uma organização que, em troca de impostos, teoricamente oferece a consulta no SUS, a escola do filho, a segurança cotidiana e um salário de aposentado. Fui anarquista quando jovem e sonhava com uma comunidade alternativa natural sobrevivendo longe deste insensato mundo, numa redoma de pureza, o que é uma síntese do sonho escapista burguês. Nós somos emocionais e a realidade é sempre caótica; o Estado é que não pode ser nem uma coisa, nem outra.
P. Espinhosa – tataraneto do filósofo Espinoza, na brincadeira do próprio protagonista – impõe-se ser um abstêmio para, no final, descobrir que a Ética não vale nada?
R. O romance não conclui nada nem fecha com um laço moral qualquer – o leitor acompanha uma hipótese de existência em que estão todas as variáveis que nos movem, mas não há tempo para nenhuma conclusão fechada. É apenas um dia de crise. Entretanto, pressentimos “boas qualidades” no Otávio, por assim dizer; mas também sabemos que todo narrador é suspeito. Ele se vê envolto na névoa ética do país, não como quem se imagina personagem heróico de uma teoria, mas como alguém preocupado comezinhamente com a fidelidade da mulher, a ambivalência dos filhos e a eventual corrupção dos chefes. Ele mesmo nunca foi exatamente um santo. Há o tempo todo um certo contraste entre sua obsessão lógica (é um matemático com traços quase autistas) e o caos emocional da vida.


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Capa do novo livro DIVULGAÇÃO


P. Você vive em Curitiba faz muitos anos, como tem sido escrever sobre Brasil e viver na agora chamada “República de Curitiba”? A cidade mudou?
R. “A República de Curitiba” foi uma expressão criada pela verve de Lula para denunciar uma suposta conspiração jurídica que, curiosamente, teve um efeito contrário: em geral, o curitibano se orgulha de sua “república”. Há complexas variáveis sociológicas a considerar, mas basta frisar que Curitiba – o “Brasil diferente” de que falava o escritor Wilson Martins – é uma cidade marcada na origem pela imigração europeia, que legou traços culturais predominantemente conservadores, um espírito que vem resistindo a todas as transformações demográficas e modernizantes que a cidade viveu nas últimas décadas. Nesse sentido, a Operação Lava Jato e a prisão de Lula não mudaram absolutamente nada na cidade. Mas já ouvi reclamações do “transtorno” nas quadras próximas à sede da Polícia Federal em função dos acampamentos. Gosto muito de Curitiba, onde vivo há mais de cinquenta anos. Sinto que é uma cidade maravilhosa para quem escreve. Do ponto de vista institucional, não tenho medo da tal “República de Curitiba”, que, afinal, só é daqui por acaso da jurisdição. Tenho muito mais medo, por exemplo, da poderosa república paralela que matou Marielle. Esta sim, é verdadeiramente assustadora, e tem de ser desmantelada com urgência total.

A ARTISTA QUE FALA E DIZ SUA POSIÇÃO: CIDA MOREIRA











Há pessoas que são diretas, retas, certeiras no que dizem.Consciente de seu papel, como artista, Cida expressa-se como cidadã exata, humana. Capto-a  pelo seu Face em que ela diz:
(mantenho seu léxico e formato idêntico ao postado ao face)
......

vendo Boulos ontem, atirado na cova de leões desdentados e patéticos, representando o brasil de hoje, sonho com o futuro político sim...não é sobre o brilhante Boulos apenas...é sobre algo que significa desde já o culhão de ser que vem vindo de outros por aí...não aplaudo ninguém ainda, mas que virá virá..e vem muito e inquestionavelmente de um homem de 73 anos preso numa cela, que continua sendo o pilar de tudo que ainda vai acontecer, de tudo que já aconteceu...uma ponte indestrutível...um homem que nada irá fazer calar, nem eliminar...de dentro de sua cela, e dentro do mundo....parabénsBoulos..valeu......viva eternamente Luiz Inácio......

sábado, 5 de maio de 2018

Me acho incompleto e por isso preciso do mistério -----Manoel de Barros Entrevista


Reprodução Portal Vermelho





Não creio em gênios, creio no bom poeta, no mecânico das palavras e seu sonho  de funcionar; isto que me dá de comer para dissipar o indissipável,  mas que rende água na boca e engana para renovar-me, já que somos escravo de palavras, mesmo as escravizando, muitas vezes, dissecando-as como feijão  verde ao sol mas sem dúvida a entrevista é saborosa.

Mesmo dialogando o poeta raspa a palavra ou as palavras e constrói o poético.Sua narrativa entra no poético para facilitar dizer, desenhando a(s) palavra (s) nas suas redondezas circulares e mexe e remexe-as.

Só por um tantin  vemos como o poeta  tem a língua da  cabeça boa:


             ... Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do mistério. Pra                                    mim, a razão é acessório. . .

         ...O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-              las      nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as   coisas. E a visão                  nos  socorre desse mesmal.             
  
Vejam essa  bacana entrevista daCaras Amigos 

                

Manoel de Barros: Três momentos com um gênio

Caros Amigos -https://bit.ly/2noIoPG  por  :Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues

GRANDES ENTREVISTAS






Três momentos com um gênio
Entrevista publicada na edição 117 de Caros Amigos, em 2008, uma das raras vezes em que o poeta recebeu jornalistas em sua casa – em geral, preferia responder às entrevistas por escrito.
Confira abaixo.
Por Bosco Martins, Cláudia Trimarco e Douglas Diegues
ManoelDeBarros-tp
“Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”
O mito se encontrava apoiado na balaustrada da embarcação, olhando andorinhas que se dirigiam ao pôr-do-sol. A cena se passa na década de 40 e o encontro se deu num barco no “mar paraguaio” do Pantanal sul-mato-grossense. Transbordando encantamento, o rapaz franzino se aproxima do grande escritor, que todo aristocrático se abanava num leque. “Andorinhas encurtam o dia.” Ao fazer o verso de improviso, iniciou-se naquele momento a amizade entre o poeta e o seu mito.
As semelhanças entre Guimarães Rosa e Manoel de Barros adquiriram formas evidenciadas em suas trajetórias literárias e pessoais, a partir daquele instante. 
As estruturas formais da poesia de Barros se assemelham ao mistério semântico da obra de Rosa. Não só criam e remexem com as palavras, mas se servem de uma maneira bastante simbólica da linguagem popular, mesmo eles tendo escrito em gêneros diferentes, um em poesia e outro numa prosa poética. Como no romance de Rosa, a poesia de Manoel de Barros também pode ser lida em vários níveis. Especialista nas obras de Barros e Rosa, o professor da Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, MS, Marcelo Marinho, diz que a originalidade lingüística do poeta e do escritor dificulta a tradução da obra de ambos para outros idiomas: “Alguns tradutores quando não entendem o sentido da palavra a suprimem”. Marinho estuda os campos semânticos, que são campos de palavras próximas, das obras de Barros e Rosa. Ambos são autobiográficos. Grande Sertão: Veredas foi qualificado pelo próprio Rosa como uma “autobiografia irracional” de personagens reais. A guerra de Riobaldo (alter ego de Guimarães) contra Hermógenes significa uma profunda critica à literatura da década de 1950, que já se tornara estéril, não tinha mais para onde ir. Então Riobaldo, ao lado de outros jagunços, como Dos Anjos, simbologia para o poeta Drummond, combate a má literatura. Remanescente dessa filiação literária, Manoel de Barros também bebeu na fonte dos clássicos e tem influências dos “faróis” da literatura mundial, como Homero, Valéry, Baudelaire. 
Aliado de Rosa contra a poesia ruim, seus personagens também são reais, como Zezinho-Margens-Plácidas, fazedor de discursos patrióticos; Maria-Pelego-Preto, tão abundante de pêlo no pente que o pessoal pagava pra ver, Mário-Pega-Sapo, que esfolava os batráquios a canivete para ver o futuro dos outros nas entranhas, e Bernardo, o transfazedor da natureza. Com recorte original e formas diferentes de fazer leitura de sua poesia, alguns enxergam nela o erotismo. Uma relação quase carnal com as palavras, com a intenção do poeta de dar à luz novos mundos. 
Nesta entrevista, o poeta revela outra forma de se manifestar: responde às perguntas de forma poética batendo à máquina em sua velha Olivetti.
Quando faz cinqüenta anos que Guimarães Rosa lançava Grande Sertão: Veredas, você completa 90 anos, também recriando e remexendo com as estruturas formais da literatura. Trace um paralelo do que representa este momento.
Outra vez o Rosa me contou: “Precisei botar o nosso idioma a meu jeito a fim que eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais, sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra. E você, Manoel?” Me perguntou. Respondi: “Eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério”.
O que ficou na sua cabeça do encontro com Rosa?
Conheci o Rosa na primeira viagem que ele fazia para o Pantanal. Fui ao encontro de um mito. Porque, para mim, ele era um mito. Porém, no instante que o conheci, ele se tornou um ser amável e bom de conversa. Conversamos sobre nada e passarinhos. Foi uma conversa instrutiva!
Aos 90 anos sempre voltamos à infância? Você afirma que seu conhecimento vem da infância. É porque talvez, como Sócrates, tudo que sabemos é que nada sabemos?
A metáfora era essa mesmo. Tudo o que eu aprendera até meus 90 anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vêm de minhas percepções infantis.
Fale um pouco sobre a infância, a juventude e a velhice.
A um editor que me sugeriu que escrevesse um livro de memórias eu respondi que só tinha memória infantil. O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra da velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias infantis da velhice.
Tem uma frase de um ator que nunca me saiu da cabeça.  Dizia que Deus fez tudo bom, só cometendo um erro: a duração da vida. A vida é muito curta e deveria ser não infinita, pois seria muito chata, mas pelo menos o dobro. Duas vidas, uma para ensaiar e outra pra representar. Você concorda com isso?
Concordo, sim. E até proponho uma solução científica. Seja esta:
O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!
E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.
Se a angústia é um espinho na carne, que não se pode tirar, para o poeta a passagem do tempo é angustiante?
Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro Santiago. Santiago, no galpão, desafiou que não cairia de um cavalo famanaz de brabo que havia na fazenda. Todo mundo zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arrearam o cavalo famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão, os peões viram escrito à espora na paleta do animal esta frase: “Até aqui Santiago veio bem”. Pois é: até aqui...
O que se há de fazer frente ao mistério das coisas? E para o poeta, qual o sentido da vida?ManoelDeBarros-Nov2014-ftoGuilhermeFilho-SecomMT-330-228
Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim, a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.
O que o poeta teria a dizer sobre o amor, a inveja e o ódio?
Algum tempo sonhei meu socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo: “Amar ao próximo como a nós mesmos”. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com ambições diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também.
O pintor Marc Chagall, morto em 1985, dizia que a coisa mais importante na vida era o amor: “Se você tem uma mulher a quem ama, então isso é tudo”.
Encontrei na Stella a mulher e companheira de todas as horas. Na alegria e na tristeza – como nos prometemos no casório. Conseguimos um amor profundo e sonhado em todos os dias.
Um dos seus poucos livros “inéditos” e fora do prelo, Nossa Senhora da Minha Escuridão, é um livro um tanto deísta, meio católico para quem o leu. Você crê mesmo em Deus ou, como a maioria dos poetas, no fundo, no fundo, é um agnóstico?
Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinaram mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância.
Por que alguns acham graça na sua poesia? Seria por expor um dialeto infantil? Memórias Inventadas – A Segunda Infância, por exemplo, seria na sua concepção uma brincadeira de criança?
Aprendi com meu filho quando ele tinha 5 anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: “Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele”. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: “É o impossível verossímil”. Pois não tem disso a poesia? 
Seus versos têm mesmo pernas, bocas, sexo etc.? A humanização das coisas está em sua poesia?
Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal.
Se tivesse que ser crítico de seus poemas, quais temas você diria que são mais recorrentes?
Acho que ser gente é o tema tão mais recorrente. Ou não ser gente. Se o tempo não é humano eu humanizo. Amarro o tempo no poste para ele parar. Boto a Manhã de pernas abertas para o sol. Me horizonto para os pássaros. Uma ave me sonha. O dia amanheceu aberto em mim.
Por que os clássicos são sempre necessários e quais influências na sua literatura, dos “faróis” da poesia mundial, Valéry, Baudelaire e Homero?
Penso que a partir dos “faróis” o poema passou a ser um objeto verbal. Por antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feita de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de idéias.
Quanto tempo da “inspiração súbita” demora para virar um poema?
Inspiração eu só conheço de nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita, eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema.
Você está escrevendo algo no momento? E, além de escrever, o que dá mais prazer ao poeta nos dias de hoje?
Estou escrevendo a terceira parte das minhas Memórias Inventadas. No demais releio minhas velhas preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente, desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter visões. Mais tarde elaboro as visões.
De que forma você recebe as críticas positivas e negativas sobre o seu trabalho?
Não sou diferente: as críticas contra fazem um gosto amargo na alma. As boas melhoram o nosso ego.
Você tem fascínio pelo primitivismo e já morou com índios. O que seria o conceito de vanguarda primitiva?
Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos.
Na sua concepção, o ódio não se caracterizou muito neste último século? Para o poeta ainda existe alguma esperança no futuro?
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Eu me considero um songo no assunto.
O poeta e a Vanguarda Primitiva
foto03 manoel de barrosVanguarda Primitiva é uma criação coletiva do poeta Manoel de Barros, do jornalista Bosco Martins e do poeta do portunhol selvagem Douglas Diegues. Surgiu inspirada em uma conversa literária que quer transformar o grau de conhecimento em índice de desenvolvimento humano através da fascinação pelo primitivo. Não curralesca e nem esotérica, a vanguarda primitiva já rendeu algumas obras em seu caminho para as origens. Kosmofonia Mbyá Guarani, registro literário-musical, da Editora O Morto q Fabla, de Guilhermo Sequera, organizado por Douglas Diegues, traz o seguinte registro de Manoel sobre a obra: “Ouvi os cantos, a voz, os murmúrios dos MBYA Guaranis. Eles me transportaram para a fonte das palavras. Me levaram para os ancestrais, para os fósseis lingüísticos, lá onde se misturam as primeiras formas, as primeiras vozes! A voz das águas, do sol, das crianças, dos pássaros, das árvores, das rãs... Passei quase duas horas deitado nos meus inícios, nos inícios dos cantos do homem”. 
Outras obras da Vanguarda Primitiva: o programa de televisão O Outro Lado de la Frontera, de Douglas Diegues; o livro La Máquina de Hacer Paraguayitos, de Wáshington lphidio Cucurto, editado pela Editora Eloísa Cartonera, em capa de papelão; O Poeta É um Ente que Lambe as Palavras e se Alucina, de Arlindo Fernandes; o documentário Wega Nery, a Dama das Artes Plásticas, de Luiz Taques; a revista literária Ontem Choveu no FuturoO Mandruvá, um site cultural que ficou só no sonho (sonhar faz parte da vanguarda primitiva), e rendeu mais esta entrevista inédita, publicada agora pela Caros Amigos, concedida à jornalista Cláudia Trimarco. O poeta responde escrevendo a mão, uma das formas que escolhe quando quer se expressar poeticamente.
Quais palavras/cores, fatos/fotos melhor explicam o Manoel de Barros? 
Palavra: parvo; cores: o azul; fatos: passei a vida tentando escrever em língua de brincar. Minhas palavras são de meu tamanho; eu sou miúdo e tenho o olhar pra baixo. Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio.
Como você define o Poeta? Se pudesse, o que reinventaria?
Poeta é uma pessoa que luta com palavras. Carlos Drummond escreveu: lutar com palavras é uma luta vã. Se eu pudesse, reinventaria outro sinônimo para Poeta. Poeta seria o mesmo que parvo. É um sujeito que, em vez de mexer com borboletas, pedras, caracóis, mexeria com as coisas úteis.
O que o Pantanal significa na vida do Manoel?
Pantanal é o lugar da minha infância. Recebi as primeiras percepções do mundo no Pantanal. Meu olhar viu primeiro as coisas no Pantanal. Minhas ouças ouviram primeiro os ruídos do mato. Meu olfato sentiu primeiro as emanações do campo. E assim com os outros sentidos. O que eu tenho de preciso são as primeiras emanações que Aristóteles chamaria de nossos primeiros conhecimentos.
A poesia extravasa ou explica seus sentimentos?
Eu acho que não explica nada, mas extravasa as minhas primeiras percepções.
Quais são as três coisas mais importantes para você?
As três coisas mais importantes para mim são duas: o amor e a poesia.
Como é o dia-a-dia do “Manoel”?
Tenho uma rotina quase militar. Acordo às 5 horas, tomo um copinho de guaraná em pó, caminho 25 minutos, tomo café com leite, subo para o meu escritório de ser inútil. Desço meio dia, tomo dois uísques, almoço e sesteio. O resto é pra ouvir música. E ver o dia morrer.
O andarilho é um poeta por excelência? É assim que você se sente?
Andarilho é um ser que honra o silêncio. Essa é uma qualidade de escol. Ele não sabe se chegou. Não sabe pra onde vai. E gosta de rio, de árvore e de passarinho. Andarilho é um ser errático – igual a poesia.
Por que o Poeta se esconde da mídia?
Por temperamento? Não tenho outra explicação. Até não sei se me encontro mesmo. Vai ver que me escondo para aparecer!
Como você vê a ação do tempo sobre o homem?
No meu caso, o tempo estragou mais o meu corpo. Não posso mais amar total. Não posso mais correr, dar salto mortal, ver longe, nem ouvir longe. Na minha imaginação criadora, o tempo não se meteu. Sobre os outros homens, cada um tem sua carga.
Qual o futuro que você vê para a Poesia? E o Planeta Terra tem futuro?
Não sei. Acho que os cientistas estão furando tanto o planeta que não sei nada sobre o futuro. Sou um homem de fé e acredito na terra para sempre. Se a terra permanecer e os seres humanos não voltarem ao chipanzé, que Darwin diz que tomará – se isso não acontecer, a poesia permanecerá. Mas não sei.
"Desde os cinco anos eu já era velho"Manoel de barros em casa
Esta terceira entrevista inédita foi concedida aos jornalistas Bosco Martins e Douglas Diegues, para o programa O Outro Lado de la Frontera, que será exibido no final do ano pela TV Educativa Regional de Mato Grosso do Sul. É também uma raridade, pois o poeta não costuma dar entrevistas da maneira convencional e muito menos aparecer na televisão.
Douglas Diegues – Explica pra nós, poeta, essa história da humanização de todas as coisas, uma língua de brincar.
É um dialeto infantil. Acho que passei a vida inteira brincando, porque todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos, são todos assim; quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso pra procurar o sentido, não acha a idéia, porque a linguagem apaga a idéia, a metáfora destrói qualquer idéia. As idéias depois, se quiserem, inventam. 
Douglas Diegues – Estamos no centro do Brasil ou no umbigo dele, entre as culturas ancestrais e a modernidade. Depois que li Manoel de Barros, quis ir mais pra trás, ler os índios, pra ver se encontrava o Manoel por lá.
É aquela história que nós inventamos do Movimento de Vanguarda Primitiva. É uma vanguarda, mas é primitiva, que renova. Ler a palavra, a poesia, renova a 
gente. O original vem das palavras, do contato que você tem com o primitivismo, que pra mim é sempre fascinante. Inclusive andei e morei por lá, era uma questão só de fascinação. Não tinha intenção de empregar na minha poesia, não percebia o quanto iria ajudar na minha poesia, depois dessa viagem que fiz pela Bolívia, Equador, Peru, que tive um choque cultural e comecei a mergulhar bem nessa questão. Quando fui morar nos Estados Unidos, chego lá e como a conhecer Picasso, escutar Bach, Beethoven, vou conhecer pessoas que eram artistas de verdade. Era jovem ainda, devia ter meus 27, 28 anos e coisa contemporânea e erudita causou um choque entre o erudito e o primitivo dentro de mim. Eu passava a tarde inteira numa igreja do século 13, que foi transportada de avião pedra por pedra de uma cidadezinha da Itália e construída perto de um parque. A Itália tinha dinheiro e fazia coisas grandiosas. Dentro da igreja tinha bancos, e o dia inteirinho até as 10 horas da noite tinha algum padre tocando Bach, Beethoven, alguma coisa da música barroca e eu me empolgava, porque era uma coisa que alimentava muito a minha sensibilidade.
Bosco Martins – Os poetas só gostam de música erudita?
Não, gosto de tudo. Chico, Paulinho da Viola, tudo que toca, mas estou com meu ouvido meio enferrujado.
Bosco Martins – Te angustia envelhecer?
A gente envelhece mesmo. Desde os 5 anos eu já era velho, porque uso óculos. Desde os 5 anos descobriram e me levaram ao médico e receitaram óculos. Pra longe. Mas isso nunca atrapalhou a poesia. Pra perto eu tiro os óculos. Eu escrevo sem óculos na minha velha Olivetti.
Bosco Martins – Sua obra é autobiográfica, de personagens reais. Quando os personagens vão se esvaindo, o que sobra para inspiração do poeta?
Sabe o que é, Bosco? É aquilo que conversamos sempre. O meu conhecimento vem da infância. É a percepção do ser quando nasce. O primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro tocar, o cheiro, enfim. Todo esse primeiro conhecimento é o mais importante do ser humano. Pois é o que vem pelos sentidos. Então, esse conhecimento que vem da infância é exatamente aquele que ainda não perdi. Os outros sentidos fomos adquirindo porque era quase uma obrigação. Era como um calço. Por que tem os repentistas, que são analfabetos, sabem fazer uma obra de arte mesmo que não estudaram? Fazem a poesia deles sem nenhuma preocupação estética. Todos têm que ler Homero? Poesias têm que ter palavras, uma feira de idéias.
Douglas Diegues – Mesmo com todas as angústias, você parece que é um dos homens mais felizes que conheci. Você vive em paz?
É a questão do nascimento, da criação. Acho que isso influi muito na vida. Sempre tive uma vida muito tranqüila, porque fui criado no Pantanal com minha mãe, meu pai, meus irmãos, sem conflitos, com muito carinho, sem fome, sem notícia de que havia gente passando fome. Tudo isso conta para que minha poesia tenha substância.
Bosco Martins – A editora Planeta já encomendou novo livro? Quando vai pro prelo?
Estou trabalhando direto no meu próximo livro, que é o Memórias Inventadas, agora terceira infância.
Douglas Diegues – Beleza de entrevista no Estadão (sobre o Memórias Inventadas - A Segunda Infância).
Tenho recebido muitos pedidos de entrevistas. Nunca dou entrevista como essa para vocês. Só respondo por escrito. Tem tido uma repercussão muito boa esse livro. 
Bosco Martins – É que você fez esse livro com muito gozo, não é?
Eu só faço com gozo.
Bosco Martins – O poema que abre o livro, Estreante, é muito vigoroso. Estávamos comentando aquele trecho da “pancas”: “fui morar numa pensão na rua do Catete, a dona era viúva e mui vistosa e tinha uma indiana, que tinha pancas...”.
É uma expressão do português antigo. Pancas era peralta.
Douglas Diegues – Começa bem erótica A Segunda Infância.
Foi meu editor. Eu mandei dezesseis poemas e ele falou: “Vamos colocar esse na frente”. Eu pensei: será que vai dar certo? Ele tem a possibilidade pra vender o livro, pra que o livro seja aceito e esse poema parece muito bom.
Bosco Martins – São percepções não só da infância, mas também da sua adolescência...
O que aparece sempre é resultado de percepções. É verdade que eu estudei, tenho conhecimento fora disso, tenho conhecimento de lingüística, estudei tudo. Isso aí só importa para a sua técnica. Porque tem aquele poeta que diz que cultura é o caminho que o homem percorre pra se conhecer. Mas nós somos incompletos, nos sentimos incompletos. Só podemos ser completados pelo mistério. 
Douglas Diegues – Não tem sentido racional, é outro tipo de sentido.
Na verdade não tem sentido nenhum mesmo, essa incompletude nós só podemos completar com o mistério.
Bosco Martins – Uma vez você falou que o mistério é a coisa mais real.
É a coisa mais real. É real.