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quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Graciliano Ramos e o Brasil de hoje: Memórias do Cárcere por 247


"Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas."


Em tempos de horror - de uma ditadura disfarçada entre golpes,eleições sob suspeitas de fraudes, militarismo ativo - no comando nas coxias ou vociferando claro e límpido, une-se ou submete-se um judiciário capengando ao lado dos falsos líderes,Franklin Frederick, escritor ambientalista,  nos relembra as faces de outro tempo que recobrem hoje  nosso país tomando a fala de Graciliano Ramos- via 247 -https://bit.ly/2LZjH8V - Paulo Vasconcelos



GRACILIANO RAMOS POR 247



"Mas não vivemos em tempo ordinário (...). Cada indivíduo se julga com o direito de ensinar qualquer coisa, surgem apóstolos de todos os feitios, sumiu-se o ridículo e o mundo se vai tornando inabitável".
Graciliano Ramos, Linhas Tortas
Graciliano Ramos foi a vítima mais célebre da repressão do Governo Vargas. Foi preso em Maceió no dia 3 de março de 1936, permanecendo detido sem acusação formal até o dia 13 de janeiro de 1937. Sobre este período escreveu «Memórias do Cárcere», publicado pouco depois de sua morte, faltando um capítulo que ele não teve tempo de terminar. Relendo-o hoje, percebo que mais do que uma grande obra literária e um documento fundamental sobre aquela época, «Memórias do Cárcere» é uma obra profética: fala do Brasil de hoje e do que ainda está por vir. Isto porque nesta obra Gracialiano Ramos analisou e descreveu com clareza e profundidade um conjunto de mecanismos, comportamentos e atitudes que dominaram grande parte da sociedade e das instituições do Brasil naquele período. Passada a repressão, porém, este conjunto não desapareceu, apenas submergiu. E no Brasil de hoje volta à superfície muito do que Graciliano Ramos já havia visto e denunciado, fazendo de «Memórias do Cárcere» um guia indispensável para compreender nosso próprio tempo. Separei algumas frases, poucas, de «Memórias do Cárcere», que descrevem com precisão o Brasil de hoje. Espero com isso despertar o interesse pela releitura desta obra e resgatar sua importância na luta pela democracia no Brasil.
Sobre a necessidade do capitalismo de construir uma ideologia que disfarce sua atuação e seus verdadeiros propósitos, por exemplo, Graciliano Ramos escreveu:
"Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas."
Como não ver no Brasil de hoje a atuação desta «inteligência safada» alugando outras «inteligências canalhas» no processo que levou ao golpe que derrubou a presidente eleita Dilma Rousseff, à prisão do ex-presidente Lula e, por fim, à eleição de Jair Bolsonaro? Que esta «inteligência safada» do capitalismo seja inimiga profunda da cultura e de todo o pensamento crítico é um outro fato observado por Graciliano Ramos e muito obviamente presente no Brasil da era Bolsonaro, onde abundam «inteligências canalhas» de aluguel dispostas a defender propostas como as escolas sem partido, ou a homofobia, a tortura, as ditaduras e a exterminação dos povos indígenas. Isso sem mencionar a entrega das riquezas públicas brasileiras para o capital financeiro através das privatizações. Já desde algum tempo no Brasil procura-se encarcerar o pensamento e o espírito. Sobre tudo isso Graciliano foi - e é - contundente:
"O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam aguentar políticos safados e generais analfabetos?"
Nada mais atual. O obscurantismo pregado por certas igrejas evangélicas ligadas ao novo Presidente, a escolha de Ricardo Velez Rodriguez para o Ministério da Educação, de Damares Alves para Ministra dos Direitos Humanos e de Ernesto Araújo para as Relações Exteriores são sinais claros de que o Governo Bolsonaro está em guerra contra o pensamento e a cultura. Guerra inevitável, como bem viu Graciliano Ramos, para se levar adiante um projeto econômico profundamente elitista, anti-popular e anti-nacional.
Graciliano Ramos estava bem consciente também da extensão da opressão necessária para manter um tal regime:
"É o que me atormentava. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em sistema."
E ele sabia que não precisaria muito para ser enquadrado como «inimigo» pelo regime – de então e de agora - e nos avisou:
"Tínha-me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um diletante."
Diante da combinação de brutalidade e ignorância da repressão do governo Vargas, Graciliano chegou a pensar na possibilidade do exílio:
"Imaginei-me em país distante, falando língua exótica, ocupando-me de coisas úteis, terra onde não só os patifes mandassem."
Graciliano Ramos também denunciou a abjeta subserviência do Brasil da época a um outro país, a Alemanha nazista. Mas suas palavras também descrevem com clareza a subserviência, alardeada com orgulho pelo Ministro Araújo, do Brasil de hoje aos EUA, basta substituir, na frase abaixo, "ditadura ignóbil" por "Donald Trump" (ou talvez, apenas acrescentar "de Trump" depois de "ignóbil", também funciona):
"A subserviência das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura ignóbil."
Graciliano também observou e denunciou a deterioração do sistema legal, procedimento fundamental para o estabelecimento de um estado de repressão:
"A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso, impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente."
E Graciliano prossegue, escrevendo o que parece ser um comentário à atuação do Poder Judiciário de hoje:
"Se os defensores da ordem a violavam, que deveríamos esperar? Confusão e ruína."
Mas o pior ainda pode estar por vir. «Memórias do Cárcere» contém uma sombria profecia sobre um possível futuro deste governo:
"O governo se corrompera em demasia: para aguentar-se precisava simular conjuras, grandes perigos, salvar o país enchendo as cadeias."
Desde o governo golpista de Temer já se tenta "simular conjuras, grandes perigos", inventou-se ameaças terroristas porque nada melhor que um inimigo interno para disfarçar fracassos econòmicos e justificar a repressão. Este processo continua, sobretudo através da criminalização de movimentos sociais como o MST. A política econômica proposta pelo Ministro Paulo Guedes beneficia principalmente o setor financeiro e fatalmente vai aumentar os niveis de desigualdade e de pobeza. E as privatizações apenas vão entregar ao capital internacional as riquezas públicas do país, diminuindo ainda mais a possibilidade de recuperação econômica real. As forças que estão por trás da eleição deste governo não tem a menor preocupação e nem o menor compromisso com o Brasil e com o seu povo, apenas com o mercado. A combinação de despreparo, rapina, mediocridade e submissão aos interesses dos EUA, características do Governo Bolsonaro, inevitavelmente levarão ao desastre econômico e social, gerando cada vez mais resistência popular. Para o Governo, que conta com uma enorme participação de militares, só restará aumentar a repressão – sob qualquer pretexto – para manter-se no poder: "salvar o país enchendo as cadeias".

sábado, 5 de janeiro de 2019

JORGE AMADO E SUA BIOGRAFIA FINALMENTE ! Capturas do Facebook por F.Mattos


JORGE AMADO por Olímpio Pinheiro 



O já colaborador,  Dr. Florisvaldo Mattos, aqui está outra vez, vem com o apontamento acerca da Biografia  de JORGE AMADO de  Josélia Aguiar. Ela   uma intelectual séria, gestora cultural e não necessita de maiores adjetivos;  por si só, seu nome e seu trabalho já dizem  tudo; Espinheira,  por outro lado é o poeta baiano por excelência, meu amigo, e que com narrativa curta diz sinteticamente o que é a grande obra que faltava no cenário brasileiro: JORGE AMADO.Figura impar esquecida, em alguns espaços e negligenciado por Universidades e Escolas.Amado foi o símbolo da Bahia e de m Brasil forte, mesclado de contradições.Sua obra extensa é uma história de um Brasil que em tempos atuais se renega. Algumas obras estão no cinema,  numa certa TV que  folclorizou-a, não gosto desta palavra mas uso no sentido de  carnavalizar . Mas  vale  ir direto a suas obras originais.
Segue abaixo a captura do Face de  Florisvaldo:

Prometi, cumpro, postando o artigo de Ruy Espinheira Filho sobre Jorge Amado, a partir da leitura da elogiada biografia do escritor baiano da autoria da jornalista Josélia Aguiar. Aí vai, abaixo, para mais fácil leitura. Ilustração: Jorge Amado, por Olímpio Pinheiro.
JORGE AMADO
RUY ESPINHEIRA FILHO
Acabo de ler a biografia de Jorge Amado escrita por Josélia Aguiar, que merece parabéns pelo trabalho de 7 anos de pesquisa vasta e profunda. Lê-se como um romance de aventuras, felizes ou infelizes, cheias de coragem e sacrifícios em nome de ideais – especialmente o ideal maior, a literatura. E se algo não poderá jamais ser negado a JA é, sem dúvida, a intensidade de viver e escrever. Uma intensidade que vem da infância e chega quase aos 90 anos.

Sua existência foi uma incansável – até implacável – construção de si mesmo e de sua obra. Que, tão amada quanto odiada, acabou por conquistar o mundo todo, ou quase. O amor foi – e continua sendo – de milhões de leitores. O ódio, quase sempre de certos críticos e professores (do tipo dos que perseguiram também nomes como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, para só ficarmos nestes grandes) e particularmente dos conservadores e reacionários de todas as cores e crenças. Na UFBA, por exemplo, uma certa professora gostava de repetir: “Aqui, Jorge, só o de Lima”. Sim, Jorge de Lima poderia e deveria ser estudado; Jorge Amado, não.*

Com o tempo, venceu o amor. JA cresceu entre os leitores comuns e acadêmicos. Nunca se leu e estudou tanto JA em escolas e universidades como ultimamente. As dissenções políticas desapareceram, assim como muitos preconceitos de ordem linguística, política e moral que levavam à proibição – e até à queima em praça pública de exemplares das obras, como aconteceu aqui mesmo em Salvador. Sim, JA era considerado o grande imoral e o grande subversivo de um país atrasado e submetido à ignorância e à estupidez das ditaduras. Um subversivo que continuou socialista até o fim, mas profundamente desencantado com a URSS e seus crimes contra a humanidade.

Referi-me à intensidade de viver e escrever: envolvimento com política, aqui e em outros países, participação em movimentos internacionais em favor da paz e dos direitos humanos, atividade jornalística intensa, inclusive na direção de redações, crônicas e artigos incontáveis, viagens seguidas pelo mundo afora em importantes missões – e, sempre no centro de tudo, a literatura.

Já ouvi escritores dizendo que não escrevem por falta de tempo. É, pelo visto, os deuses reservaram a Jorge Amado um tempo especial que o tornava capaz de cumprir tarefas incríveis e mais, bem mais, muita coisa a mais... E sempre em um caminho ascendente: aperfeiçoando-se a cada dia como homem e como artista. A leitura de sua biografia (que eu conhecia de maneira fragmentária, escrita inclusive por ele) me deixou ainda mais admirador de Jorge Amado. Por suas realizações e pelo seu exemplo de cidadão, que renovam em nós a vontade de trabalhar e a esperança.
A TARDE – 03/01/2019. Salvador Bahia
*negritado por mim

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

É ético comprar na Amazon? Empresas da chamada economia de plataforma conquistam um consumidor sem tempo. Mas a comodidade não é de graça. Conveniência ou consumo responsável?

A matéria do El pais -Br -.https://bit.ly/2V7tdec -é extremamente esclarecedora.Sou consumidor de livros -ebook, até ai , tudo bem, penso eu.Mas os demais produtos levam a indagar sobre a cadeia que produz a demanda de consumo de vários produtos e com isto  está o problema.Leiam Paulo Vasconcelos

https://bit.ly/2V7tdec

Há tempos que o consumo ético é uma forma de incidir sobre o que compramos e, portanto, sobre o que é oferecido. E nos permite, também, influenciar sobre os processos de fabricação e transporte daquilo que consumimos. Conhecer detalhadamente as implicações de tudo o que adquirimos nos abre, portanto, a possibilidade de votar com a carteira. Mas enquanto muitas pessoas incorporaram, provavelmente, a preferência por tecidos não animais, produtos fabricados localmente e alimentos ecológicos, o debate sobre o consumo do que nos propõem algumas das novas empresas nascidas na aurora da Internet está menos desenvolvido.
E, entretanto, essas novas empresas são cada vez mais onipresentes. As caixas com o logotipo do sorriso da Amazon, por exemplo, são cada dia mais onipresentes. A empresa que Jeff Bezos criou em 1995 como uma livraria online, e que dois anos mais tarde já estava na Bolsa, é hoje a marca de venda em pequenas quantidades mais valiosa do mundo. Permite adquirir e receber a domicílio de prendedores de cabelo a peças de carro.






Estamos diante de um exemplo claro de como as possibilidades tecnológicas estão mudando nosso dia a dia. A Amazon reflete as dinâmicas que caracterizam essa longa entrada no século XXI: o surgimento de grandes complexos empresariais de base tecnológica (os famosos GAFA, acrônimo de Google, Apple, Facebook e Amazon), a crise do comércio varejista local, a robotização do trabalho e o auge do ócio em casa.
Desde que chegou à Espanha em 2001, o crescimento da Amazon é constante, mas seus serviços ainda estão longe dos experimentados pelos consumidores norte-americanos. Na Espanha, a empresa possui 10 depósitos e garante a entrega no dia em poucos códigos postais. Nos EUA, a Amazon possui 17 centros de distribuição somente no Estado da Califórnia, em certas regiões garante a entrega em menos de uma hora, aceita pedidos diretamente de assistentes virtuais como o Alexa e Echo, possui lojas físicas onde os livros não têm preço e supermercados sem funcionários humanos, e já é o segundo maior empregador do país, superada somente pela rede Wal-Mart.
A Amazon passou de vender livros a vender de tudo, e se transformou em um negócio global e multisserviço. Na Espanha existem, na realidade, quatro “Amazons”: Amazon Spain Fulfillment (logística), Amazon Spain Services (serviços), Amazon Web Services (nuvem) e Amazon Online Spain (publicidade). Quatro empresas que faturam 4,2 bilhões de euros (18,6 bilhões de reais), dos quais declararam ao fisco espanhol 289 milhões de euros (1,2 bilhão de reais) em 2017 e pelos quais pagaram 4 milhões de euros (18 milhões de reais) em impostos de sociedades (um diminuto 1,4%), de acordo com a estimativa publicada em abril pelo jornal Expansión.
Um dos grandes debates que o espetacular crescimento da Amazon gerou é o de seu impacto no setor varejista. Após anos teorizando sobre o desaparecimento do pequeno comércio como consequência do surgimento das grandes superfícies, no final parece que as plataformas online, com a Amazon na liderança, podem acabar dando o golpe de misericórdia tanto em lojas de bairro como em grandes superfícies. O comércio tradicional, grande e pequeno, tem dificuldades para competir com uma multinacional que pode mobilizar em pouco tempo redes logísticas globais a preços muito baixos. A Amazon é principalmente uma loja de lojas, e dessa forma divide gastos e riscos.
Bezos identificou uma oportunidade de mercado que parecia marginal, a distribuição global de livros com prazos e preços acessíveis, e essa foi a base de seu supermercado do mundo e de uma estrutura societária que vende de serviços da Internet à mão de obra com a ferramenta Amazon MTurk.
A partir do site livraria, desenvolveu acordos com terceiros vendedores para que todos utilizassem a plataforma, incorporando dessa forma o perfil tanto do vendedor como do revendedor, algo que permitiu à Amazon conseguir os rendimentos e os dados necessários para iniciar o salto a outros setores de serviços e produtos. A empresa rentabilizou sua posição dominante sem piedade, colocando em situações bem difíceis não somente o setor varejista local como grandes redes.
E parece que a ambição não tem fim. Bezos construiu um império. Não só encontrou um filão na prestação de serviços informáticos de armazenamento e gestão a clientes como a NASA, como é o proprietário do The Washington Post.



Alguns especialistas se referem às mudanças introduzidas por empresas como a Amazon nas dinâmicas de trabalho utilizando o termo de taylorismo digital. No começo do século XX se expandiram as teorias de Charles Taylor e seu método de organização industrial para racionalizar e mecanizar o trabalho, dividindo as tarefas de maneira sistemática com a finalidade de aumentar a eficiência e produtividade. Sob esse modelo, o trabalho de cada operário era cronometrado em um sistema de produção em cadeia que retirava valor da mão de obra especializada e diminuía os salários. De maneira parecida, a cadeia logística da Amazon maximiza as tecnologias digitais e a possibilidade de monitorar o trabalhador e o produto minuto a minuto tanto dentro como fora de suas instalações. Existem funcionários que relataram jornadas extenuantes, controles constantes e objetivos de produtividade impossíveis, aos que é preciso somar um alto número de empregos temporários e salários baixos que já motivaram quatro greves no depósito mais antigo da empresa na Espanha, em San Fernando de Henares (Madri). 400 membros da equipe do The Washington Post chegaram a mandar uma carta aberta a Bezos nesse ano em que pelos brilhantes resultados conseguidos pelo jornal de maior circulação na capital norte-americana (o número de assinaturas digitais duplicou em 2017, o tráfego no site aumentou em mais da metade e as previsões de rendimentos publicitários foram ultrapassadas) pediam um “tratamento justo” a cada um dos trabalhadores que contribuíram com o sucesso. “O Post não é um negócio qualquer. Mas mesmo se fosse, essa não seria a forma de demonstrar que valoriza seus empregados. Por favor, mostre ao mundo que não só pode abrir o caminho para ganhar dinheiro, como também sabe como dividi-lo com as pessoas que lhe ajudaram a conquistá-lo”, finaliza a carta.
Bezos sempre colocou o cliente como sua maior prioridade, e no caso da Amazon seu sucesso mostra uma profunda mudança nos hábitos de uma clientela cada vez mais caseira. A disponibilidade do ócio em casa, com serviços de envio de comida, livros, roupa e qualquer outro produto aumenta. A Amazon não deixa escapar nenhuma oportunidade, e amplia serviços em todas as frentes, oferecendo até mesmo televisão à la carte com o Amazon Prime Video.
Ao contrário do que se poderia esperar, o grande sucesso do gigante do comércio eletrônico são as cidades e não as zonas rurais. A combinação de preço acessível, comodidade e preguiça seduziu justamente os urbanoides que menos precisam da entrega personalizada por ter comércios, supermercados e cinema próximos.
Mas o ócio abandona as ruas para se tornar doméstico, em uma mudança que muitos atribuem não tanto à vontade dos consumidores como à combinação de longas jornadas de trabalho, ao custo de vida em relação aos salários e a uma progressiva individualização da sociedade. Mesmo não estando claro se a Amazon é a causa ou a consequência, é inegável que os novos modelos de ócio com os quais lucra têm impactos psicossociais importantes.
Uma das grandes polêmicas que envolvem os gigantescos GAFA tem a ver com sua engenharia fiscal e a procura de fórmulas legais para diminuir suas obrigações tributárias. Quando fundou a Amazon, Bezos pensou em colocar sua empresa em uma reserva indígena, justamente para evitar as cargas fiscais, e por fim escolheu Seattle por suas condições de imposto. Em sua primeira incursão europeia, escolheu (surpresa!) Luxemburgo. E o anúncio em novembro da abertura de dois novos quartéis-generais em Nova York e Washington também foi precedido de uma competição pela diminuição de cargas tributárias entre aproximadamente vinte cidades.



Na Espanha, a Amazon opera com uma complexa estrutura societária que torna impossível saber quanto recebe por suas vendas. Mas os quatro milhões de euros (18 milhões de reais) em imposto de sociedades pagos em 2017, mencionados anteriormente, parecem uma quantidade menor. O desembolso dos consumidores espanhóis na Amazon pode beneficiar seu bolso, mas não reverte em trabalhos de qualidade e impostos que possam financiar serviços públicos que, por exemplo, ajudarão os funcionários precários a chegar ao trabalho e receber alguma prestação quando vencer o contrato temporário. A Comissão Europeia alertou no ano passado que algumas grandes empresas de tecnologia pagam menos da metade de impostos que empresas tradicionais.
A questão do uso e abuso dos dados merece um tópico à parte. A Amazon não só utiliza dados pessoais para controlar rigidamente seus funcionários; também, como muitas outras empresas online, reúne informação sobre todas as interações de seus clientes com sua plataforma (e com a Internet em geral através dos cookies). Sua onipresença faz com que seja um ator excepcionalmente destacado no mercado de dados. A informação que obtém permite à empresa deduzir gostos e necessidades, capacidade aquisitiva, residência e dados bancários, que depois cruza com outras bases de dados para vender esse perfil o mais caro possível aos anunciantes. Como o Facebook e o Google, a Amazon é uma agência de publicidade. A terceira maior do mundo, e provavelmente a mais diversificada, uma vez que, além dos negócios online, é proprietária de empresas de hardware, portais de entretenimento e supermercados que permitem com que ofereça perfis mais completos e, portanto, mais lucrativos. O ditado diz que quando algo é grátis, o produto somos nós. Com a Amazon, o consumidor paga e, além disso, seu rastro de dados é revendido como produto.
Então é ético comprar na Amazon? É possível que existam muitas empresas com condições trabalhistas piores, mas dificilmente terão as vantagens fiscais das quais a Amazon se aproveita. Também é possível que o ócio em casa seja cômodo, mas não está claro que uma sociedade de cubículos de uso individual seja desejável.
No passado, o taylorismo diminuiu salários e degradou as condições de trabalho, mas também impulsionou o sindicalismo moderno. Da mesma forma, a luta contra a concentração empresarial e os monopólios do final do século XIX levou ao desenvolvimento da legislação de proteção da concorrência e dos consumidores. Talvez o mais problemático do momento atual não seja o tamanho e o poder acumulados pelos GAFA e sim a confusão sobre como abordar a agenda social, trabalhista e tecnológica requerida por esses onipresentes atores.
Será preciso pensar antes de clicar novamente.
Gemma Galdon Clavell é doutora em Políticas de Segurança e Tecnologia e diretora da Eticas Consulting.




sábado, 29 de dezembro de 2018

Certamente, somente os que andam desacompanhados de si mesmos ao teu lado estarão( Do Facebook)






"Sr. Bolsonaro.
Sobre sua posse.
Além de não levar a mim mesma para sua posse, informo que dona poesia também não irá! Ela estará em delírio gozoso com Gullar, Mercedes Sosa, Violeta Parra, Brecht, Maiakovski e Neruda cantando para o proletariado.
Não irá a boniteza do povo indígena que rasgueia a floresta e resiste ao trator da ganância com urucum, jenipapo e cocares de uma sabedoria inatingível pelos senhores da devastação e da monocultura.
Não irá a alegria do povo negro. Nesse dia o Rei de Aruanda descerá a terra para defumar os terreiros e desmanchar demanda dos portadores da desesperança.
Também, não participará da farsa toda aquela gente que samba, canta e sabe que "amanhã será outro dia".
Não irão as mãos cavouqueiras que acariciam o milharal florido nos campos da reforma agrária, como se fosse os cabelos da mulher amada.
Não serás presenteado com a felicidade dos casais homoafetivos que sabem amar e desarmam a hipocrisia e o medo com beijos e afetos.
Tampouco o artista que constrói sua arte com leveza, suor, trabalho e horas de êxtase para o gozo sublime dos que sabem gozar.
A empregada doméstica e sua carteira assinada não desfilarão no tapete da mentira.
Não irá a dignidade do cotista que honra sua própria história e sabe de onde veio e para onde vai.
As mulheres libertárias estarão muito ocupadas tecendo a liberdade com os fios de ouro da igualdade, da justiça e da fraternidade. Não irão! Contudo os sussurros delas chegarão aos seus ouvidos, como o vento cortando o tempo: #elenão
Certamente, somente os que andam desacompanhados de si mesmos ao teu lado estarão".
Lilia Diniz

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

O JOGO E A SEMIÓTICA- BRINCANDO COM PIAGET, VYGOTSKY E H.WALLON UFSCAR- SOROCABA.SP

“O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata” , ensina o poeta Manoel de Barros. “Sucata”, segundo o poeta, é tudo aquilo que a “velhez venceu”. “Velhez” não é uma vida perto do fim , “velhez” é uma vida que se perdeu de seu começo, de seu “minadouro”, de seu embrião. Se 2018 está virando sucata, não está nele essa resistência-(re)invenção. Elton L Souza.


Mas a vida se reinventa a toda hora e momento no aprender.!
Fazer pente violino, amassar pente para engomar  toalha, ou amaciá-lo no tecido dos cabelos.
Dizer a lata que  ela me  cabe como jacas de cheiro de alecrim .
Sovar a caixa para caber nossos pensamentos e encher o mundo de pardais.
Imaginar é reinventar a toalha para ornar o bico e a boca! Paulo Vasconcelos











A Convite do Prof .Dr.Aldo Ambrózio estive em Sorocaba -UFSCAR dezembro-2018 para trabalho com alunos do curso de  Pedagogia.
Dediquei este encontro a Dra.Elza Dias Pacheco e a Comunidade Escola Hermilo Borba Filho.
Sempre é bom repassar o apreendido, dividí-lo com aqueles que serão futuros docentes.
Trabalhos com sucatas - Jogos em geral- dinâmicas de  grupo  apontando a dimensão ampla do jogo e sua lógica ou lógicas embutidas.
A Semiose presente nas ações lúdicas.
O desenho  como jogo e pré-escrita alfanumérica .
O Círculo e a linha como pilares do movimento.
Apontadores da mais valia do jogo em Piaget -Vygotsky e H.Wallon - Ação- Instrumentos -Afeto- Zonas de desenvolvimento  Real , potencial e proximal.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

A MÉMÓRIA É O ESTÔMAGO DA ALMA !


FELIZ NATAL ? 





Histórias da fome no Brasil, dirigido por Camilo Tavares
Foto: Reprodução/Divulgação



PODEMOS AFIRMAR  FELIZ NATAL?

A MÉMÓRIA É O ESTÔMAGO DA ALMA !( ROA BASTOS YO EL SUPREMO)

LUTAR SEMPRE! PARA UM RENASCER JUNTOS E MAIS IGUAIS!


quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

"O que resta das coisas" Caio Fernando Abreu nasceu setenta anos atrás. Capturas do Face Dau Bastos

Caio Fernando Abreu-sempre, sempre inesquecível!!


Dau Bastos





Caio F Abreu fotopor Estante Virtual






Caio Fernando Abreu nasceu setenta anos atrás. Pra comemorar o fato, Ricardo Barberena teve a excelente ideia de pedir narrativas curtas a vários autores contemporâneos, com as quais organizou o livro "O que resta das coisas", a ser lançado em breve.
Segue o conto que escrevi pra coletânea, evidentemente narrado e protagonizado pelo próprio Caio.


A VIAGEM DA BOINA
Nem o assento da frente comporta direito minhas “pernas longas, de gaúcho”, conforme disse Paulinho, antes de propor que Iva e Neca se acomodassem atrás. As duas até acharam bom, pois a muvuca lhes permite continuar trocando olhares cúmplices, invariavelmente seguidos de gargalhadas, como se cada meandro de mundo fosse um espetáculo divertidíssimo.
Paulinho tá na mesma vibe, ainda que a função de chofer o obrigue a dividir a atenção, já um tanto comprometida pela miopia vermelha que se avista por trás das lentes dos óculos, com o que acontece além do para-brisa. Embalado apenas por dois conhaques, me limito a sorrir de leve, dizendo pra mim mesmo que, na carência em que me encontro, não tenho direito algum de achar os três abobalhados.
Neca paparica seu velho gravador e cobre de elogios a fita-cassete que preparou especialmente pra viagens, agora a oferecer, a uma altura que possibilita conversa, o estribilho iniciado com “I can’t get no satisfaction”, reproduzido, no todo ou em parte, por cada um de nós. Paulinho garante que não perderá nem a pau o show dos Rolling Stones, programado pro próximo mês, conforme anunciam outdoors espalhados por toda a cidade.
Passados alguns segundos, lembro do recente surto de bandas de roque nacionais e comento que Mick Jagger se organizou pra vir aos trópicos por necessidade de aprender com seus colegas brasileiros. Reagindo à minha ironia com maldade, Iva dispara que a literatura só tem final infeliz porque os autores são todos rancorosos. Os três soltam um riso tão esporrento que temo ver o fusca escorregar nos trilhos e se esborrachar nalgum poste.
O pior é me sentir sobrando numa excursão sem sentido. Afinal, trocar Santa Teresa por Mirantão é quase uma redundância. Comparado ao deserto que enfrento cotidianamente em Sampa, o bairro do bonde figura de oásis. Sobretudo na parte alta, já grudada à floresta, onde uma ex-socialite tão dura e decadente que se autonomeia “massa falida” me alugou um dos cômodos da vivenda oitocentista herdada da família.
Cheguei lá depois de fechar uma nova leva de contos, quando o desgaste de mais esse parto me fez chorar por um bom tempo, ao fim do qual decidi me afastar um pouco de tudo o que tinha me cercado durante a escrita. Passados cinco dias descendo a pé a comprida Almirante Alexandrino – pra finalmente tomar a Aarão Reis e dar no Bar do Gomes ou esticar até a Ladeira da Misericórdia e desaguar na Lapa –, aceitei com entusiasmo o convite, feito na irresponsabilidade das quatro da manhã, pelo trio, mais conhecido que amigo, com que findava a noitada.
– Quase ninguém vai lá! – Paulinho fechou os olhos, já mínimos, pra antever o éden.
– Gosto de Mauá e Maromba, mas visual é Mirantão! – Neca enfatizou.
– Sempre que fui, quis virar local! – Iva elevou a lisonja ao ápice.
Também tomado pela ideia de que a felicidade tá sempre longe de onde nos achamos, confirmei que achava maravilhoso conhecer Mirantão, pelo que me diziam, ideal pra gente se concentrar em trabalhos de fôlego, a exemplo do romance pra cujo enfrentamento começava a me preparar. Já agora, encarava o final de semana que planejávamos ali como possibilidade de usar a água fria de poços e cachoeiras pra reavivar meu corpo, mortificado pelo acorrentamento de meses à máquina de escrever. Primeiro, redigia baboseiras pra pagar as contas; na segunda etapa da jornada, sofria com os personagens de mais uma narrativa, que evidentemente precisava ser tão curta quanto aquelas, únicas, que o monge Machado conseguia produzir em períodos de muito trabalho na repartição. Os quatro copos se encontraram no ar, como se nos conhecêssemos desde a primeira infância e celebrássemos a oportunidade de resgatar o passado em passeio ao paraíso.
Acordei lá pelas três da tarde e, em regalo com que brinco de me acariocar, continuei na cama. Vezenquando recordava com certo incômodo a combinação nada a ver de me despencar pro mato. Na tentativa de me acalmar, recorri à estatística, que eu próprio havia desenvolvido, segundo a qual mais da metade dos compromissos assumidos no Rio é furada. Projeto concebido durante saideira no Bar Goiabeira, então, é que ninguém leva a sério mesmo. Àquela altura, nenhum dos três devia lembrar sequer de minha existência.
Quieto, em meu canto, esquecido de todos, queria era repassar mentalmente os contos entregues ao editor, que, convencido de que meu jeito jeans fará muito bem à sua exitosa coleção de bolso, praticamente os arrancou de minhas mãos. Desde então, tento verificar se de fato me agradam, se são o máximo que poderia colocar em circulação depois dos trinta anos, se fazem sentido juntos. Luto sobretudo pra banir a impressão de que falta uma última peça: algumas poucas laudas que, ao demonstrarem magnetismo entre polos aparentemente opostos, ajudem a atenuar o derrotismo do conjunto.
Pra me acalmar um pouco, lembrei do tom categórico com que o editor havia dito que os sentimentos de insuficiência, oco e vazio andarão sempre comigo, mas jamais comprometerão aquilo que escrevo. “Ao contrário: são o adubo de sua prosa!” Na hora, tive vontade de rir de sua pretensa esperteza, que, no entanto, me servia de apoio durante a rememoração.
Quanto mais observava o telhado musgoso do velho casarão, mais constatava que os enredos variam em cenário, mas se unificam pelo desespero, pesado a ponto de transformar tudo em declive. A divisão da coletânea em duas partes parece ajudar no arejamento, em malabarismo arquitetônico que apenas acentua o encaminhamento pro despenhadeiro.
Na contramão, em movimento sinuoso, quixotesco, que não cura ninguém de nada, nem mesmo de dor de cotovelo, mas é percebido pelos poucos leitores que realmente me interessam, sobressai o resultado de um esforço estafante. Pra mim, escrever é quebrar toda a matéria-prima feito cabra-cega, acariciar os cacos até sentir os dedos sangrarem e, depois de descartar as partes imprestáveis, valer-me da legitimidade dos insatisfeitos crônicos pra usar as escolhidas na criação de estranhices.
Leminski, filho temporão de Oswald, portanto hábil criador de neologismo ferino, anda rindo de escrito esquerdofrênico já não encontrar mercado. Será que agora os críticos me respeitarão de verdade? Alguns certamente dirão que nem a abertura política reduziu o umbigo e o frufru de certos desbundados... Mas as autocríticas dos ex-exilados fazem as acusações de alienação (como aquelas que atingiram a amantíssima Clarice alguns anos atrás) parecerem a mais stalinista das patrulhas. Mesmo que sejam mais jornalísticos que literários, os depoimentos dos ex-guerrilheiros hão de contribuir, ainda que involuntariamente, pro resgate da prosa má-moça, danada, sem pose nem serventia.
Só não posso querer que gente como Hilda e eu conquiste o grande público. É possível que aumente o número de convites pra feiras e festas, onde sempre se formam plateias fissuradas pelas extravagâncias que não ousam praticar. Quanto menos entendem, mais apreciam! Chocadas com as bizarrices dos loucos da língua, agradecem pelo imenso prazer de se sentirem normais aplaudindo entusiasticamente, em uso ultra hábil das mesmas mãos que jamais aprenderão a abrir livro experimental. Thriller, policial, fantástico, vá lá. Agora, poesia sem aspecto de autoajuda e narrativa sem jeito de folhetim, nem pensar.
Tava eu assim, resolvido e resignado a ponto de sentir minha comprida carcaça disposta a finalmente levantar da cama e sair pruma boa badalada, quando fui surpreendido por gargalhadas familiares na sala principal, amigável troca de palavras com minha anfitriã e, logo em seguida, sempre ao som de riso desbragado, batidas na carcomida porta de meu quarto. Que queria o trio, se já tava escuro? Retomar a farra de ontem?
– Tá pronto? – Iva gritou do lado de fora.
– A gente acordou antes do meio-dia, mas precisou da tarde toda pra conseguir se arrumar... – Neca exagerou e, como se a dificuldade de organização dos três contivesse uma engraçadíssima pitada de contestação ao sistema, arrastou os outros dois ainda mais no riso.
– É melhor assim, que o fusquete só se sente à vontade quando o sol vai embora... – A insinuação de que o carro ficaria na primeira blitz que aparecesse coroou o destrambelho.
Aborrecido com tanta besteira, cogitei seriamente de responder que sou desses que veem inteligência na tristeza. Também poderia alegar indisposição. O importante era me livrar dos três. Mas acabei concluindo que, como tudo o mais, a estada em Santa tendia a cair na rotina e, mesmo que o pulo a Mirantão se revelasse um perrengue, reacenderia a vontade de subir até a Estrada das Paineiras, pra admirar o Jardim Botânico, a Lagoa Rodrigo de Freitas e Ipanema a partir das alturas.
Além do mais, os três nem de longe eram as pessoas mais interessantes da galáxia, mas ao menos demonstravam algum compromisso comigo. Gritei que precisava apenas de um minutinho e, enquanto jogava umas peças de roupa na mochila, preparei o espírito pro reencontro emborcando duas doses do líquido endiabrado da garrafa sobre a mesa de cabeceira.
Prestes a abrir a porta, dei uma última olhada no espelho embaçado acima da pia e avistei uma cara barbuda, pela qual o cabelo se derramava sedoso, necessitado de algo que lhe mantivesse a elegância mesmo on the road. Ri como se fizesse uma grande descoberta, quando jamais tomaria a estrada sem a boina azul com que agrego à minha imagem um toque de Che, reconhecido, por quem ousa encarar os dois poços escuros que me servem de olhos, como sendo não de dureza, e sim de ternura.
Agora seguro a boina firmemente com a mão direita e estico a cabeça pra fora do veículo feito sulista que precisasse de toda a umidade que emana da Floresta da Tijuca durante o inverno; ou mochileiro das antigas, a expor seu rodado rosto às carícias, sempre inéditas, do vento. Na verdade, tento escapar um pouco à estridência dos gritos de “’Cause I try and I try and I try and I try” dos parceiros de trip, sobretudo de Iva e Neca, que alisam Paulinho, em indício de que o feriadão faz parte de um plano de combinar ménage à trois e lua de mel. Movimento os lábios pra fingir que os acompanho no canto e alargo minhas magras bochechas pra esboçar sorriso, mas tenho consciência de que a única mônada aqui sou eu.
Paulinho retribui os agrados de ambas retirando as mãos alternadamente da direção, mas ao menos tem a sensatez de reduzir a velocidade do automóvel. Cachos desgrenhados, barba descuidada, bata branca puída, cinto de pano colorido a segurar calças vermelhas e tênis sujos a se movimentarem entre acelerador, embreagem e freio – tudo parece ingrediente de composição de estereótipo. Penso, com amargura, que o criticismo virginiano amplia continuamente minha distância em relação até mesmo às pessoas com quem tenho bastante em comum, sem que eu me sinta melhor que ninguém em nada.
Paulinho me lança um olhar constrangido, pedindo desculpas de a situação deixar claríssimo que é mais um desses héteros que, nos últimos tempos, se sentem culpados com o tratamento que recebemos. Quais paladinos, fazem questão de travar amizade, desfilar a nosso lado, nos defender de qualquer ameaça, chegando, em conversas mais íntimas ou emocionadas, a desmunhecar. Entretanto, ao menor afago de fêmea, são devolvidos, como que por feitiço, à armadura original, o que reduz o achegamento em relação a nosotros a uma solidariedade que, em certas situações, fere e ofende. Escaldado com pintas assim, tomei minhas cautelas em relação à maciez do riponguinha, a quem agora posso responder com um franzir de lábios com o qual digo bem mais do que se desse de ombros.
DJ tarimbada e exímia conhecedora da área, Neca consegue a proeza de baixar o som, mexer habilmente nas teclas do gravador e, no momento em que o volks substitui o ronco das marchas de força pelo chacoalhar da descida de paralelepípedos que une Santa ao Cosme Velho, faz a gente ouvir, a toda altura, “like a rolling stone”. Eu próprio solto a voz, em recorrência ao trecho como síntese de minha solitária e desenraizada existência. Olhamos uns pros outros aliviados de finalmente formarmos quarteto. Não fazemos a menor ideia do que o futuro reserva a cada um, muito menos dos rumos de nosso flagelado país, mas ao menos neste instante, efêmero que seja, curtimos uma deliciosa epifania.
– Sujou! – Paulinho berra de repente. – Vai, Neca! Rápido! Desliga esse troço!
Bob Dylan é substituído instantaneamente pelo alarido dos três, que, em troca abrupta da hilaridade pela paúra, têm certeza de que serão arrastados pelos cabelos, metidos em masmorras e torturados pelos muitos meganhas a formarem uma barreira altamente armada na frente da mansão de Roberto Marinho, certamente a oferecer jantar pra decidir, em companhia de um punhado de generais e empresários, o que acontecerá a toda a nação de agora em diante. Ainda que jamais escape à sensação de suspeito, não tenho nada que possa se associar a flagrante, portanto, em vez de temer o xilindró, sofro é de ser confrontado com minha condição de dependente de frilas pra editoras e periódicos dedicados a publicar porcaria.
A mídia marrom, então, que podre. E eu, revolucionário dos costumes, superinquieto, hiperquestionador, com o indicador frequentemente em riste, a usar minha metralhadora imaginária pra combater todos os opressores do universo, inclusive os ditos de esquerda que se permitem ser machistas, vivo reduzindo a balbucios e cochichos as raras críticas que ouso fazer aos donos dos grandes meios de comunicação. As portas dos poucos diários, hebdomadários e mensários de peso precisam se manter abertas, sob pena de a modéstia virar miséria, penúria, morte de fome. Vendido, eis o que sou!
– Se eu for, babau! – Paulinho pondera. – Vão sacar a inhaca no
ato, descobrir o bagulho e levar everybody em cana!
Seis olhos encarnados se voltam pra mim, eleito, por aclamação muda e suplicante, pra apresentar a comprometedora mala do fusca aos brucutus. Penso seriamente em mandar o trio à merda, saltar, informar aos milicos que apenas pegava carona e usar minhas “pernas longas, de gaúcho”, pra seguir calçada afora, muito cidadão, rumo a Laranjeiras. O problema é que minha mochila tá misturada às deles e tem, entre as provas de que me pertence, o bloco em que anoto ideias pro tal romance. Como os demais livros, o novel demorará anos até ficar pronto; mas preciso rabiscá-lo com urgência, pra me convencer de que as cento e tantas laudas prestes a ser diagramadas realmente formam um todo coeso e já fazem parte do passado.
Do nada, baixa um pensamento que outrora chamariam de inspiração: a mim, muito mais interessado em história do que em História, essa víbora chamada vida oferece a oportunidade de ganhar uma estampa capaz de render o suficiente pra me livrar da escravidão dos bicos. Parta dali em camburão ou viatura do Exército, empregarei os tempos de cárcere no engendramento de um relato com início mais ou menos assim:
"Como dizem os especialistas, o dito Império do Brasil não passou de reinadozinho pusilânime, periférico e sem qualquer poder de influência fora de seu território dilatado, porém brenhoso. Nem por isso se pode dizer que o país não tem imperador: onipresente, a manter sob rédeas curtas a atenção de cada compatriota, há décadas um verdadeiro déspota atravessa incólume as variações de governo e até de regime. Minha desgraça consistiu em passar em sua porta justamente na noite hibernal em que se ajustava o discurso com que os mandantes de sempre disseminariam a ideia de retorno à democracia..."
Com um início assim, eu ganharia a simpatia de companheiras e companheiros, que fariam um boca a boca capaz de animar as livrarias. Agora, o que realmente transformaria o livro em best-seller seria seu deslocamento do espaço nada visitado das resenhas pras páginas policiais e políticas. O assunto despertaria o interesse mesmo de quem detesta literatura, que eu teria o cuidado de seduzir, ao oferecer um entrecho cheio de peripécias e emoções, colocado em capítulos breves, feitos de parágrafos de poucas linhas e pródigos em diálogos.
Inabaláveis, as próprias Organizações Globo, cujo sucesso depende da canibalização generalizada, abririam espaço nas mídias impressa e eletrônica pro fenômeno de vendas. Submetidas a copidesque cioso, as notícias sobre a obra a despiriam completamente do caráter de denúncia. Aos poucos, cristalizariam a ideia de que o suposto imperador é da linhagem democrática e esclarecida de Dom Pedro II.
Seja como for, alguém precisa negociar com os homens, que começam a se aproximar em forma de cinturão, a deixarem claro, com a simples expressão do rosto, que jamais acreditariam na limpeza de uma lata lotada de jovens de aparência duvidosa. Neca bate em meu ombro direito com a delicadeza de quem roga, Iva afunda no banco traseiro e Paulinho segura o volante com força pra dissimular a tremedeira. A paranoia os leva a perder completamente a dignidade diante do perigo. Igualmente nervoso, amasso a boina contra a cabeça na esperança de ganhar o que me falta de coragem, abro a porta com o máximo de calma que consigo, desço de um modo que não levante qualquer suspeita de que esboço reação e dou um boa noite alto o suficiente pra convidá-los a tratar comigo.
Acostumados com a rotina de abordar primeiramente o motorista, os fardados hesitam um pouco sobre o que fazer, mas um oficial posicionado a certa distância faz um sinal de cabeça pro sargento, que se adianta pra me acompanhar pessoalmente na temida inspeção. Abro o capô e ouço o rangido da tampa como indício de que nos daremos muito mal. Inclino-me solícito e humilde, certo de que sairei da revista já algemado.
Ao sentir o corpo do sargento alinhado com o meu, penso em elogiá-lo pela conquista das três linhas da divisa, mas contenho o ímpeto a tempo, pois a luz de sua lanterna deixa ver uma bagagem tão esculhambada que qualquer puxada de papo, principalmente idiota, ainda mais com bafo de conhaque, passaria por tentativa de ludibriar. Ele apalpa todas as mochilas pra fazer o reconhecimento prévio do terreno, mas, em vez de abri-las de imediato, vira o rosto levemente pro meu lado e me perscruta da cintura até a boina, na qual se detém. Deve compará-la, toda achatada, ao quepe verde-oliva que tem garbosamente na cabeça. As etiquetas “comunista”, “maconheiro” e “viado” certamente pipocam em seu cérebro. Preparo-me pra receber os insultos de sempre, quem sabe até uns tapas.
Entretanto, não sinto animosidade ou sequer energia ruim da parte dele. Fico pasmo de vê-lo esboçar um leve sorriso que lhe permite mostrar, apenas pra mim, o bom estado dos dentes tratados pelo Exército. Finalmente começa a abrir as mochilas e, ao lançar o facho da lanterna no interior da primeira, já sussurra que tá tranquilo, pois a ordem é de procurarem apenas armas. Remata a gentileza perguntando se minha boina, assim espalhada, é sinal de que sou pintor.
– Não, de cabeludo mesmo... – gaguejo e já me amaldiçoo, por reagir de maneira tão imatura quanto o trio, a esta altura certamente roendo unha. – Na verdade, sou escritor.
– Eu sabia que era artista... Um dia também sonhei em ser um... Até hoje guardo a guitarra que meu pai me deu antes de enfartar...
Suspira tão fundo que sinto dó de nós dois e, talvez devido aos muitos abalos dos últimos tempos, preciso lutar pra não cair no pranto. Se ele parece frustrado, morro de medo de a necessidade de pagar contas ou a fatalidade me impedirem de botar pra fora toda a ficção que intuo dentro de mim.
Mas lanço um olhar de esguelha e, ao ler seu nome no uniforme, acho uma graça tal que me imagino correndo até o primeiro orelhão, pra implorar ao editor que segure os originais na fase de preparo. Em menos de uma semana, tomarei um ônibus noturno e, na manhã seguinte, lhe entregarei o texto que falta ao novo livro.
– Sargento Garcia, com todo o respeito, acho que nosso encontro vai virar conto...
– Prefiro romance...
FIM

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

COMUNIDADE ESCOLA HERMILO BORBA FILHO RECIFE -PE -Um exemplo do NÃO- A ESCOLA SEM PARTIDO

Comunidade Escola Hermilo Borba Filho 1981 -Arquivo particular





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COMUNIDADE ESCOLA HERMILO BORBA FILHO RECIFE - PE
Um exemplo do Não a ESCOLA SEM PARTIDO

Em tempos tão difíceis é bom relembrar: Estamos vivendo na atualidade um paroxismo sobre o valor da Educação. A Escola sem Partido vem de longe. Mas seu auge vem se dando de modo intenso em 2004, ganha corpo como projeto de lei 7180/2014, do deputado Erivelton Santana do Patri mas, que tem como seu maior marqueteiro o advogado Miguel Nagib, paulista, com cargo na Procuradoria do Estado de São Paulo.

O que nos chama atenção é a idiossincrasia da proposta, pois em termos, digamos, semióticos ou filológicos, não existe Escola sem Partido, pois na verdade o que se quer é implantar uma partidarização da direita e o solapar do pensamento crítico face um tsunami que se desdobra mundo afora, chegando às alturas com a turma do Sr. Bolsonaro.

O que se pretende é punir, castrar o acesso ao conhecimento nas suas amplitudes históricas e filosóficas, é manipular a escola e seus professores, e pior - o aluno. É uma demanda punitiva quanto ao crescimento das esquerdas no Brasil e, sobretudo, uma perseguição ao Partido dos Trabalhadores, maior partido com militantes no Brasil, reconhecido mundialmente. É a tentativa de um fascismo dos anos XXI.

Isto posto, gostaria de relembrar a Comunidade Escola Hermilo Borba Filho, em Recife - Rua do Espinheiro, 730 (1980/1987), que mesmo nos fins da ditadura, foi uma Escola que militava por uma educação crítica, para um igual pensamento crítico. Tal escola, do qual fiz parte, nasceu de um sonho de intelectuais que tornou-se realidade, mas teve uma vida curta face às questões econômicas da época.

Na verdade, ela tomou como mote a Escola Comunitária de Campinas, SP, mas foi muito mais além em sua proposta pedagógica, driblando inclusive a famosa LDB 5.692, repropondo de modo bem particular a grade de disciplinas, destacadamente Moral e Cívica e trabalhando com o Materialismo Dialético, ou seja, adentrando pela história da selvageria do Capitalismo.

Propunha a escola uma leitura crítica das mídias, releitura da história, dita oficial, por autores diversos, não comprometidos com partidarização política portuguesa, o início de nossa história e seus falsos mitos e genocidas de nossos povos legítimos - os indígenas e de negros solapados de suas terras para erguer um país às custas de uma escravatura.
Buscávamos desmitificar os Colombos, Cabrais, opressores de nossos nativos e a selvageria dos Bandeirantes, como milícias de carnificina.

Objetivava-nos olhar a língua - falada e escrita - na sua multiplicidade de contextos léxicos. Apontar autores populares como contadores de uma história da língua paralela a hegemônica. Observar fatos na história e geografia do Brasil e que se interligavam com o capital dominante europeu, como a Inglaterra, França e Alemanha. Entender a história da América Latina, desprezada em nossos livros de história. Desvendar a manipulação de guerras suicidas como a chamada guerra do Paraguai, onde o Brasil Império foi um opressor junto com a Províncias Unidas do Prata-Argentina, provocando um genocídio do povo Paraguaio, e mais naquele momento as ações intervencionistas - Operação Condor, dos EUA, GOLPE MILITAR, entre muitos outros fatos de nossa história.

A escola era uma iniciativa privada, de um grupo de intelectuais e educadores, se propunha a criar uma alternativa emancipativa ao jovem, a criança, desde a alfabetização à 8ª série.

Tínhamos como pano de fundo de inspiração teórico da Argentina Maria Teresa Nidelcoff - Uma Escola para o Povo e Escola e compreensão da realidade (ambos pela Editora Brasiliense). Outros autores deram sua contribuição como: Paulo Freire, aliás amigo de Maria Teresa, Alicia Fernandez, afora pensadores da epistemologia genética como Piaget e da Sociogenética em Lev Vygotsky, Wallon, entre outros.

A escola tomou corpo no meio intelectual à época, em Recife, e foi prestigiada pela classe média, embora uma parte de seus alunos fossem bolsistas (crianças e adolescentes pobres) do Morro da Conceição. Tal mesclagem era proposital no sentido de apresentar ao alunado as diferenças de classe, e nem por isso foi rejeitada pelos pais.

O brinquedo, o brincar, foi um dos motes para formular uma metodologia interdisciplinar, em que o objeto, brinquedo ou o brincar era motivador de aportes das Ciências, Matemática, L. Portuguesa, História, Geografia, etc. A partir do objeto e sua ação se discutia conceitos, por exemplo, em Ciências: caso da Pipa, em que se vislumbrava os conceitos de corpo, peso, volume, movimento, deslocamento, espaço, à medida em que se confeccionava e punha-a a voar. Outras disciplinas faziam adentramentos, como Ed. Artística - estética, Matemática - cálculo, geometria, etc.

As disciplinas eram coligadas de modo a fazer um todo epistêmico, mostrando o conhecer como algo interligado pleno, afim de se produzir um sujeito crítico e cidadão.

Estamos em preparo de uma obra sobre a mesma que deverá estar pronta no próximo ano - 2019. Assim esperamos.

Mas faremos alguns aportes por aqui vislumbrando aspectos da obra, momentos da escola, e com isto fazermos uma contrapartida a estes tempos que pretendem nos vestir de máscaras fascistas.

Aguardem em breve novos posts!