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domingo, 2 de abril de 2017

Uma escritora alarmante que desvenda a história

BY Rev Brasileiros


Luzilá Gonçalves Ferreira é explosiva ao escrever, arrebanha ventos, destila palmeiras e canta o tempo como se viola fosse. São cordas afiadas, onde seu delírio de criar espoca como as marés do tempo. Leitora fina, prova do sabor de onça da palavra. Cedo, aos dez anos ja devora Dostoievski, Jean-Christophe de Romain Rolland, o Sparkenbroke de Charles Morgan e as Cartas a um jovem poeta, de Rilke.
Nascida em Garanhuns, logo cedo veio para o Recife, onde fez a graduação em Letras, iniciou a pós e pulou para o mundo através dos livros e estadas em países outros. Fez doutorado em Estudos Literários na Universidade Paris VII, morou dez anos na França e quatro na Argentina, em Buenos Aires. Mas, no resto do tempo, é o Recife mesmo cidade de sua eleição e coração, nervos e escrita.
Professora da UFPE, nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras, e escritora, Luzilá tem 44 livros publicados, entre contos, romances, biografias, ensaios, individualmente ou como co-autora. Possui também muitos artigos em periódicos nacionais e estrangeiros, vários prefácios e participa da Academia de letras de Pernambuco, em que se destaca pelo volume da obra e tessitura contemporânea da escritura.
Luzilá Gonçalves Ferreira foi premiada na IV Bienal Nestlé de Literatura, em 1988, com o romance Muito Além do Corpo. Em 1994, recebeu o prêmio Joaquim Nabuco, da Academia Brasileira de Letras, com Os Rios Turvos. Venceu ainda o prêmio Lucilo Varejão, da Fundação da Cultura da Cidade do Recife, com a obra No Tempo Frágil das Horas, de 2003. Voltar a Palermo foi finalista para o Prémio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em 2002.

Em 1982, a autora tornou-se conhecida nacionalmente pelo seu trabalho de quase biografia sobre Lou Andreas Salomé, com Cinzas no jardim (Coleção Encanto Radical, São Paulo, ed. Brasiliense, 1982)

Fala Gonçalves:

"LouAndreas-Salomé conseguiu realizar, em seus 76 anos de vida, o que nós todos gostaríamos e deveríamos fazer sempre - e não o fazemos por descaso, indolência, medo: tornar a vida o exercício apaixonada de uma busca. Sua exploração em todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida, como o dizia Rainer Maria Rilke a propósito de Rodin, "está nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso”…”Antes mesmo do seu encontro com Rilke, Louise von Salomé já intuía essa verdade: desde muito cedo encontramos nela um grande apetite de aprender e de amar - e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor, de um esquilo na floresta ou de um corpo amado.” http://bit.ly/1ihjbxi 
Depois desta ela mergulha em outras biografias, mas esta a torna conhecida dentro e fora do país.

Na rede da história, Luzilá dá belas bordoadas, reescrevendo ficcionalmente em seus romances biográficos. Assim ocorre em Rios Turvos, de 1993 (em sua sétima edição), em que a escritora exacerba, caminhando entre história e ficção, e nos ensina literatura, à medida que nos aponta os clássicos, entremeando-se, intertextualmente, com a história de Bento Teixeira.

Bento Teixeira (1561-1600) escreveu o clássico “Prosopopéia”, épico da literatura brasileira. Pendem dúvidas quanto ao seu nascimento, se em Porto, Portugal, ou em Recife. Seus pais eram cristãos-novos, marca que carrega até o desfecho trágico de sua vida, envolvido numa trama de paixão, que o leva à prisão e à morte.
A autora narra a relação amorosa do português Bento Teixeira com a brasileira, do Espírito Santo, Filipa Raposa, com desfecho trágico: ela, sua mulher, o denuncia ao Tribunal do Santo Ofício, sob acusações de ser judeu e mau cristão. Nos entrecortes do roteiro, a autora desfila com a poesia clássica, que vem de Ovídio, como pano de fundo para os encontros de Bento Teixeira com a amada; Camões, de Sôbolos Rios… e dos breves enganos: “Do amor não vi senão breves enganos”; aparecem também os poemas encomiásticos (de Bento), na Prosopopéia, poema escrito em Pernambuco.
O amor é um tema insistente em sua obra, bem como a posição da mulher no cenário brasileiro. O amor que Luzilá compõe não é o amor banal, mas a trama sob a qual emoldura vidas e faz histórias do homem como fonte de articulações políticas cotidianas, tecendo o contexto histórico-social.
Isso está posto em Rios Turvos, 1993, Voltar a  Palermo, 1993, Muito além do corpo, 2003, A Garça mal ferida,1993, e Illuminata, 2009. Todos, à exceção do segundo, se passam em séculos passados e trazem a trama de amor, desventuras e personagens históricos.
Ampara-se a autora no seu estilo poético, que desenha e redesenha o poema. Sem fastio e sem adornos exagerados, ela decora a sua poesia mansa. Vejamos:
“um silêncio equívoco esticava os fios do telefone, feito açúcar de alfenim”, .. “em silêncio nos amamos por séculos (...) estranha foi a volta para ti, depois daquele encontro com ele” (p. 57) “deve ser, teu rosto resplende”, responde ele - Muito além do corpo (p. 59) apud Moisés Neto http://bit.ly/KtJXXu
e continua:
“O corpo é metáfora de nós, sinal evidente de algo mais profundo (...) meu existir efêmero e eterno” (p. 60) Muito além do corpo http://bit.ly/KtJXXu
Luzilá é uma poeta e tanto. Na sua escritura, convergem poetas, de Ovídio a Bento, Cecília, Drummond e senão Clarice, isso tudo em Muito além do corpo.
Agora vamos à própria escritora, que nos recebe para a entrevista, enquanto damos motes para que a mesma desfile sua palavra:
Literatura e contemporaneidade..
Há uma grande diversidade de temas e inspirações, na literatura brasileira atual.O que se poderia chamar de literatura regionalista – que alguns autores rejeitam, como se em outras grandes literaturas não existissem escritores essencialmente ligados a sua terra, penso em Jean Giono, em Francis Jammes, na França, por exemplo, em um certo Mauriac. Essa nossa literatura é de alto nível, como mostram Raimundo Carrero, Ronaldo Brito. Quanto á literatura de caráter mais, digamos, urbano,  é quase impossível acompanhar o número de autores novos que se tem espalhado pelo Brasil e generalizo, tenho a impressão de que, como disse alguém, estão todos escrevendo o mesmo livro.
O ato de escrever…Uma explosão..
- Explosão para escrever? Não houve exatamente explosão, mas um desejo sempre crescente, desde ainda menina, de um dia chegar a escrever livros. E levei anos para me decidir a ser uma escritora, o que nem bem sei ainda se sou, apesar de nove livros de ficção publicados, três biografias,organização de três antologias de literatura em Pernambuco e umas tantas colaborações em obras coletivas.
Como está a literatura …
- Há modismos sim em certas formas discursivas. Penso em alguns autores que organizam o texto, separando-o em pequenos capítulos ou linhas soltas, como se isso fosse uma grande novidade. Mas sem nada de original no  conteúdo. Para falar verdade: acho que há muita coisa ruim sendo publicada, divulgada por esse nosso pais, como sendo boa  literatura., muitos equivocos.
A literatura e a memória..
-Toda literatura não pode ser senão o próprio autor, que se derrama no texto implícita ou explicitamente, como poderia ser de outro modo, se escrever é buscar, se aproximar daquela fala que nos diria e que finalmente nunca alcançamos? Acho que poucos escritores, e penso em nossa literatura e na literatura mundial, conseguiram escrever o grande livro com que sonharam ou sonham. Respondendo a sua pergunta:  meus leitores dizem que meus livros são a minha cara.

O Romance histórico…
Com exceção de Muito além do corpo, meu primeiro roma’ce publicado, tudo o que escrevo parte da História, relatada por historiadores ou imaginada, recriada.. O modo como os seres humanos construíram as comunidades, através dos tempos, como levaram adiante projetos de vida para si ou para outros, me fascina. Nesse sentido, a história de Pernambuco é um celeiro de personagens e sugestões, e nela, sobretudo, as mulheres: Felipa Raposa vivendo em Olinda na época da Inquisição, Anna Paes dilacerada entre a admiração pela  Holanda e seu amor pela terra, nos tempos de Nassau,  a Baronesa de Vera  Cruz, dividida entre a trepidante Paris do século XIX e a melancolia de seu engenho que ela nunca saberia administrar, Iluminata, culta e solitária, buscando a si própria e ao amor, num Recife que se urbanizava, são tipos vicários de mulheres, escrevendo sua própria história e pelas quais ou o que sou.  Escrever suas vidas foi um belo desafio, pois, como saber exatamente  que sentia e pensava, como amava, uma mulher de outras épocas? Leio e pesquiso para isso: livros de História, testamentos , jornais, busco encontrar traços de vida, nos olhares tristes de mulheres do passado em fotografias antigas.  E claro, há um pouco de mim nos retratos que faço delas, quando se transformam em personagens de romance, e até traços biográficos¨como no romance Voltar a Palermo, que se passa na Argentina, nos tempos da repressão, e onde vivi: Maria, professora como eu, tem muito de mim.

Seus aconselhantes..
Quanto a jeitos de pensar, de organizar o modo como sinto e escrevo, claro, há muitas influências, de que nem me dou conta, mas que certamente estão ai. Em autores do quais me sinto uma irmã, como Anton Tchekov, Katherine Mansfield, Emily Bronte, Lucio Cardoso, Mario de Andrade, Colette, Rilke, Anna Akhmatova, que sempre leio e releio, cada vez com maior prazer à medida que os anos passam.
O que escapa ou escapou da Literatura

Na literatura brasileira atual, que o grande público ainda não destacou – mas seria isso tão importante? – penso em Arlete Nogueira da Cruz, que fez com sua admirável Litania da Velha, um retrato de S. Luis do Maranhão, cidade que amo. Quanto a Gilvan Lemos, é sim um  injustiçado: um grande contista, premiadíssimo, que nos deu com O anjo do quarto dia um de nossos melhores romances, citado no jornal Le Monde, publicado em Paris na importante revista literária Caravanes. Com fiéis leitores no Brasil, mas poderia ser melhor reconhecido. Daniel Lima: meu amigo, meu professor na universidade e na vida:  roubei parte de sua obra, fiz publicar contra sua vontade, por achar que o Brasil lhe devia isso. E o prêmio Alphonsus de Guimaraes, que lhe atribuiu a Biblioteca Nacional provou que eu tinha razão.
Como fazer um apanhado de sua obra, sim, uma radiografia da mesma, por você ..
- Radiografia de minha obra? Eu diria, como dizemos por aqui: Vixe Maria! E eu sei?  Mas Tentando lhe responder: talvez eu tenha buscado, nesses meus mais de trinta anos de literatura, dar um testemunho do que um dia em meio da vida, uma mulher resolveu acrescentar uma pequena pedra à construção de um mundo que amou, seus homens e mulheres, seu bichos, suas plantas, e que eu fico danada por ter de deixar,hélas.
E para terminar  como poderíamos dizer do Brasil de hoje…

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- E o Brasil? Odi et amo, como diria Horácio ...  Ovidio?Com todos os seus defeitos, oh quantos, carências, desigualdades, injustiças, desordens. Mas tanta esperança. Poderia viver em outros países mas é aqui  que escolhi viver e onde espero ter um tumulozinho no cemitério de Santo Amaro, que guarda a história da cidade do Recife desde 1859 (? ).

domingo, 26 de março de 2017

AS CEGUINHAS QUE OLHAVAM O MUNDO CG. PB- MORRE UMA DELAS MARIA DAS NEVES

ARREDA-SE UMA MAS A  FORÇA CONTINUA.SÃO REPRESENTANTES MÁXIMAS DA CANTORIA BRASILEIRA. COM AFINAÇÃO E FORÇA QUE O GIL SOUBE BEM RESGATAR E LANÇAR EM DVD.
POR DIÁRIO DE PERNAMBUCO
Morreu, neste sábado, em Campina Grande, na Paraíba, a cantora Maria das Neves Barbosa, mais conhecida como Maroca, de 72 anos. Ela era uma das integrantes do grupo ‘Ceguinhas de Campina Grande’. A artista estava internada no Hospital Regional de Trauma da cidade desde o dia 21 deste mês, com sintomas de acidente vascular cerebral (AVC), segundo informações do Portal Correio (PB).

O trio, também conhecido como "Irmãs Cantoras de Campina Grande", era formado ainda por Indaiá, Francisca Conceição Barbosa, nascida em 1950 e Poroca, Regina Barbosa, nascida em 1944. Todas naturais de Campina Grande e cegas de nascença. As irmãs trabalharam na lavoura desde crianças e eram alugadas como mão de obra temporária pelo próprio pai, alcoólatra. Quando ele morreu, as três passaram a se apresentar nas ruas da cidade, cantando emboladas e tocando ganzá.

Com as doações que recebiam, sustentavam 14 parentes. O repertório do trio aos poucos passou a incluir cantigas, cocos e outras formas do cancioneiro nordestino, que as irmãs reprocessaram com acréscimo de improvisos.

Em 1998, elas foram personagem do documentário A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner. O filme foi um sucesso e as paraibanas receberam elogios de artistas como Naná Vasconcelos e Otto. O baiano Gilberto Gil compôs uma música em homenagem às ‘ceguinhas’. Em 2004, Berliner lançou a versão em longa-metragem do seu documentário.. No mesmo ano as três irmãs receberam a Ordem do Mérito Cultural.

"As ceguinhas fizeram parte da minha infância e juventude, cantando pelas calçadas de Campina, antes de acontecerem filme, CD, shows", recordou em sua página no Facebook o escritor e pesquisador Braúlio Tavares. " Meio velhinhas, meio ameninadas, pessoas muito frágeis e incrivelmente resistentes. E que encontraram na música uma forma de tornar o mundo mais bonito para si mesmas, e, por tabela, para nós". 

sábado, 25 de março de 2017

TEM MEDO DE BAUDRILLARD?

QUEM TEM MEDO DE JEAN BAUDRILLARD?

POR LIVRARIA CULTURA JOCÊ RODRIGUES


Jean Baudrillard foi o enfant terrible da teoria pós-moderna na filosofia. Não gostava do termo. Achava-o vago e sem sentido. Comprava brigas epistemológicas com gente do porte de Gilles Deleuze e Jacques Derrida. Criticava abertamente o culto à imagem como substituta da realidade e os meios de comunicação em massa. Os argumentos de Baudrillard eram capazes de tornar qualquer defesa de alguns aspectos da contemporaneidade irrisória. Para ele, comprar uma bolsa ou um carro é também comprar símbolos que concedem prazer e status ao detentor. Além disso, tais símbolos seduzem e despertam ambição. Essa é, segundo sua ótica, a lógica da sociedade moderna. Enfim, fazia um verdadeiro escarcéu.

Junto a Zygmunt Bauman (1925-2017) e Paul Virilio (1932), Jean Baudrillard forma talvez o trio de críticos mais contundente da comunicação e da era digital. Tão perigoso quanto o trio de ataque do Barcelona, por exemplo.

O francês, nascido em Reims no longínquo ano de 1929, sempre foi duro na queda. Desde o lançamento de O sistema dos objetos, em 1968, já provocava polêmica. Tido por muitos como sua obra máxima, ela sistematiza o discurso da mercadoria e faz reflexões sobre o caráter simbólico dos objetos, partindo do pressuposto de que eles medeiam as relações humanas. “…Hoje os objetos tornaram-se mais complexos que o comportamento do homem a eles relativo”, diz um trecho do livro.

Entre suas contribuições filosóficas está a criação de conceitos como cultura imagética, espetáculo, valor-sinal, mercadoria-signo, lei do código, maioria silenciosa e simulacro. Todos se ligam pela tentativa de criar conceitos explicativos para o capitalismo e para a modernidade. Infiel ao marxismo, Baudrillard inverte papéis até então intocados e transfere o protagonismo da esfera da produção para a do consumo. Foi responsável por revelar de modo mais direto que estamos imersos na era da simulação e do simulacro, além de mostrar que nossas pretensões de autenticidade e realidade são rasas e vãs.

Neste mês de março, completam-se dez anos da morte de Baudrillard, mas é incrível pensar em quanta coisa mudou em tão pouco tempo. As relações virtuais se intensificam velozmente e sequer sabemos aonde elas podem nos levar. Apenas apostamos – às vezes, alto demais. Não há tempo para pensar, não há tempo para a informação se transformar em conhecimento e ficamos à deriva, em um lugar onde supostamente deveríamos navegar. Os temas discutidos por ele quase sempre tinham acontecimentos contemporâneos como ponto de partida. A cultura pop, o terrorismo (bem mais acentuadamente depois do ataque às Torres Gêmeas): todos se tornaram gatilhos para algumas de suas reflexões mais pertinentes.




Para Jorge Barcellos, historiador, pesquisador e doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “mais do que inovar com conceitos, Baudrillard codificou uma metodologia de construção de um sistema de pensamento”. Em seu entendimento, o pensador francês deu uma nova perspectiva aos estudos sociológicos. “Antes dele, a prática sociológica era formalista, isto é, muito restrita aos limites da disciplina e aos conceitos herdados da sociologia clássica a partir de Weber, Marx, Durkheim, Parsons e cia. Havia pouco espaço para a interdisciplinaridade, para o ensaísmo crítico e, principalmente, para a ironia na escrita”, explica. “Baudrillard colocou de cabeça para baixo tudo isso. Sua inspiração na linguística e na antropologia lhe possibilitou escrever um texto como um hieróglifo, que necessita tradução.”

BEM DE PERTO
Mesmo tão virulento na escrita e nas posições acadêmicas, a fama de bicho-papão parecia passar longe da vida cotidiana de Baudrillard. Juremir Machado, jornalista e doutor em sociologia pela Universidade de Paris V, foi seu orientando em 1998 e diz que o pensador era um homem “afável, irônico, inteligente demais, que sabia deixar a gente à vontade, um gentleman”. O tema de sua tese era comunicação e pós-modernidade e contava com o suporte de dois outros grandes pensadores franceses: Edgar Morin e Michel Maffesoli.

“Conheci Jean em 1991, por intermédio de Maffesoli. Fiz uma entrevista com ele sobre a iminência da Guerra do Golfo. Ficamos amigos. Eu o fiz vir a Porto Alegre algumas vezes, uma delas junto com Maffesoli e Morin, em 1993. Quando defendi minha tese de doutorado, na Sorbonne, em 1995, tendo Maffesoli como orientador e Morin na banca, Jean foi assistir. Foi um momento inesquecível para mim”, disse Machado, que conviveu de perto com aquele que, depois de certo tempo, passou a chamar carinhosamente de Jean.

A relação com seu orientador se baseava na informalidade, em assuntos sobre livros, jornais, ideias e política. “Jean sempre me pareceu uma pessoa especial. Ouvia o que as pessoas diziam, fazia comentários pontuais irônicos ou com muito humor, convidava para beber uma taça de vinho, contava alguma história das suas viagens, gostava de embarcar em projetos”, relembra.

É conhecida a ligação que Baudrillard tinha com o Brasil e parece haver um dedo de Juremir Machado nisso. Um dos projetos em que ele embarcou foi o de publicar alguns dos seus textos em terras tupiniquins. “Eu propus a ele que publicássemos no Brasil seus artigos do jornal Libération. Aceitou. Saiu no Brasil, em primeira mão, pela Sulina, Tela total, que depois teve edição na França. Fizemos também um livro pela Sulina unindo a poesia e as fotos dele, O anjo de estuque. Ele se entusiasmava e colaborava com os projetos. Era muito bacana.”

Ainda sobre a personalidade do fotógrafo, poeta, filósofo, sociólogo e semiólogo, Machado diz não se lembrar de tê-lo visto de mau humor. “Sempre o vi provocativo, amável e objetivo. Dizia o que pensava, não fazia concessões, não menosprezava o interlocutor.”

CORPO QUASE PRESENTE
Na tentativa de perseguir os caminhos e de dar contornos à turbulenta personalidade acadêmica e pessoal de Baudrillard, Paulo Alexandre Vasconcelos foi essencial a este repórter. Professor, doutor em ciências da comunicação e poeta, indicou os caminhos menos pantanosos e os nomes certos a serem ouvidos. Autor de Baudrillard – Do texto ao pretexto, Vasconcelos foi meu Virgílio em meio à densa floresta do pensamento baudrillardiano.

É visível a paixão que ele tem pela obra e pelo legado daquele que afirma ser um dos maiores pensadores que já tivemos. “A presença de Jean Baudrillard, mesmo em sua ausência corporis, permanece nos tempos contemporâneos, tendo em vista sua obra vasta – polêmica para muitos –, desde suas pontuações teóricas até sua poética ensaística em suas Cool Memories IIIIIIIV e V [série de livros considerada uma autobiografia do autor]. Jamais devemos esquecer sua leitura do mundo nesse formato, em que ele solta de modo mais claro a incongruência do sujeito dentro do caos. Ele faz antevisões que hoje recortam a história e nosso cotidiano mundial, nada se desdiz, continua atual e faz-se cumprir a miséria estúpida do nosso mundo, em um êxtase de descompasso”, garante.

A morte, aliás, era outro assunto tratado sensível e profundamente por Baudrillard, que, de sua maneira encrenqueira, flertava com a psicanálise. “Em A troca simbólica e a morte, ele se apropria de alguns paradigmas da psicanálise – o narcisismo, os princípios do prazer e da realidade, e os conceitos de pulsão de vida e de morte –, reinterpretando-os com base em uma economia política e sua signagem, realocando-os para uma nova contextualização, segundo ele, da contemporaneidade caótica do mundo do capital e seus envolvimentos densos na política. Enseja críticas a Marx e à psicanálise como um todo, acusando esta última ‘de ter, até certo ponto, contribuído para o fim do desejo e do inconsciente, por meio de uma metalinguagem do desejo’”, explica Vasconcelos.

“A questão do desaparecimento é tão central em Baudrillard como é em Paul Virilio. Só superamos um fato natural porque criamos o simbólico, isto é, representamos nossa relação com a morte e damos significado ao morto. Esse simbolismo transparece na religião. A higienização, a ciência, o medo nos afastam do reconhecimento da morte como etapa natural da vida. Não pensamos nela. Excluímos ela de nosso horizonte”, esclarece Barcellos.

O filósofo problemático não chegou a ver a ascensão das redes sociais e seria no mínimo curioso saber o que diria sobre elas e sobre a febre dos seriados que agora assola nossas pobres almas. Para Juremir Machado, “o real morreu” e a simulação “atingiu o grau máximo de sua realização”. Ele também acha provável que Baudrillard visse o boom das séries como uma universalização das novelas brasileiras. Jorge Barcellos acredita que, se ainda estivesse vivo, o francês ficaria muito interessado “em nossos novos artefatos tecnológicos, sejam eles os drones ou os novos efeitos do cinema” e nas revoltas pelo mundo, dada a crítica política aguçada que possuía.

Seja como for, o espírito inquieto do pensador invocado continua a encantar e a influenciar leigos e estudiosos interessados em compreender o real por vias ainda pouco exploradas. Enquanto o mundo continua a se transformar caoticamente, Jean Baudrillard permanece símbolo de ousadia e liberdade intelectu

sexta-feira, 17 de março de 2017

‘Drogadictos’, uma viagem (literária) e tanto

http://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/15/cultura/1489592134_191162.html
1:59 BRT  por El país Brasil  






Vamos Aguardar no Brasil, se é que haverá interesse em Publicar.
Há Latinos a escrever sobre o tema o que é de bom alvitre.


Chega às livrarias espanholas Drogadictos (Dependentes de drogas), um livro escrito por, quase todos, viciados. Certo, alguns deles não o são, ou pouco. Outros, se pode notar, bastante. Doze autores espanhóis e latino-americanos escrevem sobre viagens, não exatamente para hotéis com tudo incluído. Cada um se debruça sobre uma substância proibida, pelo que se vê nada proibida. O grupo é formado, pela Espanha, por Lara Moreno (ópio), Sara Mesa (morfina), Juan Gracia Armendáriz (maconha), Juan Bonilla (ecstasy), Marta Sanz (lorazepam), Javier Irazoki (tabaco), Manuel Astur (LSD) e José Ovejero (sexo); pelo Peru, Richard Parra (crack); pela Colômbia, Andrés Felipe Solano (álcool); e pelo México, Mario Bellatin (talidomida) e Carlos Velázquez (cocaína).
Não vamos exagerar: escrever sobre, a partir de ou por trás das drogas não é novidade. Guia de leitura urgente: Thomas de Quincey, que ficou viciado em ópio enquanto seus pais pagavam seus estudos em Oxford e depois pariu, extenuado, Confissões de um Comedor de Ópio. Henri Michaux e suas viagens com mescalina, igualmente presentes em alguns de seus poemas e em muitos dos seus embriagantes nanquins. Leiam, leiam seu muito lisérgico O Infinito Turbulento. Antonin Artaud e o ritual do peiote com os índios tarahumaras (Os Tarahumaras, leitura recomendável a todos, praticantes da causa ou não). Baudelaire precedendo e inspirando Walter Benjamin na expressão literária do haxixe (deste último, visite ou revisite Sobre o Haxixe e Outras Drogas, do primeiro volte sempre a Paraísos Artificiais, bíblia literária sobre a questão, diante da Bíblia teórica, Historia General de las Drogas –História geral das drogas–, de Antonio Escohotado).




Dito isto, todos estes escritores e todos estes livros pululam como pano de fundo consciente ou inconsciente em Drogadictos. O volume traz doses suficientes de reflexão, divertimento, canalhice, vire-se sozinho, ausência de preconceito e o habitual coquetel de prazer e remorso (já sabem, “por que são tão boas essas porras de drogas...”), tudo misturado com certa vocação de retrato sério dos paraísos artificiais e seus efeitos. Tudo temperado com soberbos devaneios gráficos do ilustrador francês Jean-François Martin, colaborador regular de jornais como Le MondeThe Guardian e The New York Times. Aqui os desenhos não apoiam o texto, aqui os desenhos são outro livro.
Tudo em Drogadictos tem um ar inocente e legítimo de convite ao prazer –com o perdão da expressão–, ao prazer da leitura, entenda-se. No entanto, as sucessivas viagens têm momentos difíceis e, mais além disso, dramáticos e trágicos. Também tragicômicos. Mas não cômicos.
Uma garota de cabelo cor de laranja come a dose de ópio que seus pais lhe deram porque se queimou com o forno e porque esse parece ser o alimento de base da família, e o ópio, é bem conhecido, cicatriza queimaduras e todo o resto. Um camicase enlouquecido pelas ruas de Lima não consegue encontrar o momento de parar de comprar e consumir coca peruana, a melhor do mundo (“o bilhete dourado do Willie Wonka do mundo da droga”). Ou o primeiro mergulho no ecstasy: o zumbido urbano de Barcelona, música techno nas alturas, a lama das próprias obsessões e aquele poema de Luis Rosales que falava da “floresta incendiada sob a água”.
A morfina entrando –e o pior de tudo: não entrando– na veia do moribundo no horror do mundo paliativo. A iniciação na maconha mais selvagem do mundo, fumando e vomitando lá em cima, na Sierra de Lobos, do México, paraíso e inferno. Frases memoráveis como esta de Andrés Felipe Solano: “Pediram um café envenenado com rum branco em uma loja na qual ainda vendem lâminas de barbear como aquelas usadas pelos suicidas dos filmes”. O tabaco trazido da América que o avô de Javier Irazoki plantava numa aldeia de Navarra (avô real ou fictício): “A heroína pura, o LSD, a mescalina ou o ecstasy concentrado não poderiam competir com semelhante alucinógeno. Cada fio de tabaco era uma bomba de surrealismo”. Ou a memória do sexo traçada por um escritor que teve de suar tinta para convencer seus editores a deixá-lo fazer isso... tinha todo o direito moral do mundo: era um verdadeiro viciado em sexo, e o sexo é uma droga, então era um drogado.
Temos de continuar a ler todos os autores clássicos que um dia escreveram sobre o assunto: suas lições são bastante práticas, para não falar de sua literatura, quase sempre absorvente. Também é preciso ler este Drogadictos se o que se deseja é, por um lado, prolongar a viagem pelas drogas através de papel e tinta, e por outro, ter acesso a uma situação muito curiosa e rara: a disposição de um punhado escritores para contar histórias que falam de um marasmo, aquele da relação entre o homem e as substâncias proibidas. A coisa remonta a algo como 4.000 anos atrás, de acordo com os que sabem. Não é, em suma, um assunto novo. Mas pode se tratar de uma forma nova. Esta o é.