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quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Abecedário de uma arte popular






Abecedário de uma arte popular

José Nêumanne

O ABC é uma modalidade do repente (poesia popular sertaneja) e do cordel, sendo basicamente usado para celebrar feitos e heróis do povo, que ouve os desafios de viola ou lê os folhetos com romances vendidos nas feiras livres do sertão. É uma prática ancestral de celebrar o heroísmo a partir de senhas, ou palavras-chave, por ordem alfabética, de A a Z. Bráulio Tavares, que conhece bem as formas literárias populares do Nordeste (assim como da ficção científica), recorreu a esse modo para fazer uma abordagem original do universo no qual se apóiam dramas e romances de seu conterrâneo Ariano Suassuna. No ano da comemoração dos 80 anos do escritor paraibano (nascido no Palácio do Governo, em 1927, ano em que seu pai, João Suassuna, era presidente da Província, que sempre lhe serviu de cenário, mesmo tendo o autor se mudado para Pernambuco, em cuja capital, Recife, foi estudar, quando sua mãe ainda morava em Taperoá), ABC de Ariano Suassuna se destaca exatamente por isso.

Leitor apaixonado da poesia e do romance e espectador privilegiado do teatro de Suassuna, o escritor de Campina Grande aproveita a celebração da efeméride para revolver, de forma competente e agradável, todo o universo mítico no qual o literato pessoense ergueu seu marco, para usar outra expressão familiar aos interessados na poética popular nordestina: Marco Marciano, por sinal, é o título da canção de Lenine e Bráulio que mistura a epopéia sideral com a saga sertaneja. Bráulio recorreu a um expediente interessante para facilitar a leitura do abecedário pelo leitor urbano, desacostumado à fórmula. O primeiro verbete é Acauã, nome da fazenda onde Ariano passou os primeiros anos de sua infância, com o pai ainda vivo. A fazenda, em Souza, no sertão paraibano, é histórica, pois por lá passou Frei Caneca em ferros a caminho do Recife, onde liderara malograda revolta republicana contra o Primeiro Império, e teve sua decadência registrada nas imagens de um clássico do documentário brasileiro, O País de São Saruê (título inspirado num folheto de cordel), dirigido por outro paraibano, Vladimir Carvalho.

Descrita no verbete João Grilo, seu protagonista, a obra-prima de Ariano Suassuna, a comédia teatral O Auto da Compadecida, é, como ele mesmo gosta de apregoar em suas engraçadíssimas aulas-espetáculo, a fusão de três folhetos de cordel, que leu na infância. O mais celebrado de sua prosa de ficção, A Pedra do Reino, do qual Luiz Fernando de Carvalho adaptou uma microssérie para a televisão, levada ao ar em junho passado, justamente quando se comemorava o aniversário do autor do romance, também se inspira (mais que isso, se molda) em formas da narrativa popular, seja cantada por violeiros e rabequistas, seja impressa nos folhetos dos poetas de bancada. O título da tese da professora Elizabeth Marinheiro sobre o romance - A Intertextualidade das Formas Simples - remete exatamente a essa questão: trata-se de um texto de ficção construído sobre a intertextualidade, só que não das citações eruditas, como o termo complicado pode insinuar, mas, sim, das formas literárias que falam diretamente ao goto, ao gosto e ao conhecimento do povo. A forma original que Bráulio encontrou para celebrar seu ídolo foi falar das fontes em que ele bebeu para construir a obra pela qual ele se tornou conhecido e festejado no Brasil inteiro na programação do veículo popular por excelência da arte, da cultura, do entretenimento e da informação. Ao dissecar as origens dos textos nos quais o celebrado autor se inspirou, o exegeta aproveitou para trazer a lume a extraordinária riqueza da produção literária dos sertões. É conhecida da academia - e até mesmo do público leitor em geral - a militância de Ariano pela conservação das formas da cultura popular, de origem marcadamente ibérica, mas misturada com tradições indígenas e africanas. Infelizmente, contudo, só se conhece a releitura que ele tem feito, primeiro no teatro e depois na prosa de ficção, das obras seminais dessa cultura, que pode ser sepultada pela urbanização, pela tecnologia e, sobretudo, pela globalização. Bráulio faz, neste sentido, um trabalho exemplar, ao escavar, como um arqueólogo e expor à luz do dia obras de extraordinário valor, recriadas pelo engenho e pela arte de um escritor fora de série, ao qual, aliás, o autor do abecedário sempre rendeu suas homenagens, a ponto de se tornar um especialista - para tanto convidado para participar da redação do roteiro original da microssérie para a televisão.

O último verbete foi reservado para Zélia, a bela mulher com quem o feioso dramaturgo se casou e sua paixão pela vida afora.

Seja na forma adaptada da modalidade de viola e cordel, seja na escolha das palavras para encimarem o capítulo, permitindo uma abordagem linear da vida, paixão e influências do autor-tema, Bráulio traça um painel completo de um universo rico, colorido e profícuo. Didático, mas sedutor, seu estilo introduz o leitor num universo ancestral, que se torna novo a seus olhos ávidos de informação.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

ABC de Ariano Suassuna, Bráulio Tavares, José Olympio, 238 págs., R$ 28,50