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quinta-feira, 17 de outubro de 2019

GUARANI, O POVO QUE QUER SER FELIZ



por Isabel Lucas (imagens: Karina Freitas)





Abrindo rapidamente 

O Suplemento Pernambuco, Recife, Pe-CEPE, inda é pouco lido por estas bandas sudestinas, todavia suas fronteiras são amplas cobre o Brasil e o mundo com suas matérias.
Poucas revistas ou  suplementos culturais sobrevivem no Brasil de Hoje.A Companhia Editora de Pernambuco-CEPE é um dos suplementos de cultura  que se salvou face a esta onda, tsunami que cortou, fez desaparecer cadernos culturais.
Entre tantas matérias escolhi esta cujo olhar é  a questão dos originários da pátria e daqui de São Paulo, vale a pena ser lida.

GUARANI, O POVO QUE QUER SER FELIZ



Esta é a quarta reportagem da série Viagem ao país do futuro, na qual Isabel Lucas pensa o Brasil a partir da literatura e da realidade que a ficção representa. O trabalho é publicado em parceria com o jornal português Público. Exceto em situações que criem ambiguidade em relação ao português brasileiro, a grafia mantém o original da autora, escrito de acordo com o português de Portugal. As transcrições da Carta pras Icamiabas (cap. 9 de Macunaíma), que têm trechos propositalmente criados em desacordo com a norma gramatical, obedecem à versão estabelecida por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo para o Macunaíma lançado pelo selo Penguin Companhia. 
***

Em São Paulo há uma aldeia guarani onde os habitantes reclamam o direito a escrever a sua história. Na sua língua e na língua dos brancos do Brasil. É uma escrita cheia de contaminações, talvez a única capaz de fazer sentido num país de identidade mestiça que Mário de Andrade satirizou no clássico Macunaíma, e Olívio Jekupé, o guarani, pratica nos livros que escreve para crianças. Estamos no mundo onde homens viram bicho, a morte não é para sempre e o lamento pode ter fim.

Maité caminha pela floresta. Vai sozinha, os galhos e as folhas contra o chão húmido debaixo dos pés a emitirem um som abafado. Tudo está quieto, as copas das árvores não mexem. Não fosse o canto dos pássaros no alto das árvores e dir-se-ia que o mundo tinha feito uma pausa. Maité desce um carreiro estreito até ao lago grande, uma massa de água a reflectir todo o verde à volta, num imenso espelho cor de musgo. Leva uma história na cabeça.


“Havia numa aldeia um guerreiro que parecia gente, mas não era. Era o Lua (em guarani, lua é masculino). Ele se fez de índio para poder fazer um pássaro que queria muito. Criou então uma menina e, quando ela cresce, ele diz que vai embora e deixa a filha. A filha fica na aldeia com a mãe e ele vai para o céu de novo. A menina começa a subir nas árvores para ver o pai. Ficava lá e toda a noite chorava. Com o passar do tempo ela virou mulher e a vida foi correndo até ela falecer. Quando ela falece, vira um pássaro chamado urutau. Em todas as aldeias a gente vai escutar a história do urutau. Em São Paulo, Paraná, Santa Catarina, existe esta história, esse mito.”


A história que Maité ouviu foi contada minutos antes, em guarani, pela avó, Maria Kerexu, e traduzida para português pelo tio, Tupã. Fala de recompensa, de verdade de sentimentos, de fidelidade, valores que os guaranis passam de geração em geração através da palavra dita na “cadência triste e melancólica particular aos índios”, como a definiu José de Alencar no romance O guarani. Maria tem essa toada que embala. Maité já a escutou em múltiplas versões da mesma história, dependendo da mensagem que a avó quer fazer passar, e ouviu-a mais uma vez com o semblante sério como diante do sagrado, os cachorros sentados por perto, o cantar dos galos em fundo. Agora caminha, o mesmo rosto sereno, passos certeiros sem pressa como se fosse impossível perder-se no mato denso que envolve a aldeia. Tem 10 anos, fala pouco. Sabe português, mas o seu pensamento é em guarani, a primeira língua que aprendeu e que partilha com sete milhões de pessoas no mundo concentradas na América do Sul. Maité pertence a uma minoria, dizimada, estereotipada, narrada pelas palavras dos outros, que conhece o preconceito e a exclusão. Ocupa um lugar na fatia estreita dos 0,26% da população indígena (dados da Funai) que compõem o conjunto dos 190 milhões de brasileiros. São cerca de 800 mil, segundo os censos de 2010. Em 1500, eram mais de três milhões, ou seja, 100% dos habitantes do território onde hoje é o Brasil. Em 1957, eram apenas 70 mil. Nunca haviam sido tão poucos.


Não se pode ler a história trágica de um povo no rosto de uma pessoa, mas também não se pode olhar o sorriso tímido de Maité sem pensar nisso. Responde às perguntas brevemente, uma ou duas palavras acompanhadas de um gesto que sublinha o que diz, e sempre com um sorriso como que a deixar claro que tudo está bem, que é mesmo assim, silenciosa. Conta que todos os dias, ao cair da noite, costuma fazer aquele caminho com a família em direcção à casa da reza onde a comunidade se junta para cumprir os rituais que fortalecem a identidade guarani, o povo que, em português, tem um nome que significa “guerreiro”. No regresso, já escuro, se não houver lua, acendem velas para iluminar os trilhos.


São duas da tarde, não há sol, o céu está cinzento mas há luz suficiente para sair do núcleo onde Maité vive com a família e ir sem tropeços, pelos carreiros mais estreitos, até ao centro da aldeia. Antes de sair, põe um gorro de lã. O inverno está no fim, não chove e estão quase 30 graus. Muito quente para um gorro. “Tenho vergonha”, justifica, enquanto compõe uma madeixa de cabelo, o rosto corado ciente da perplexidade de quem a olha e que ela não é capaz de desfazer. Desce depois a vereda, perdendo-se nas árvores.


“Maité virou mulher”, dirá Olívio Jekupé quando a neta já não estiver por perto. “Quando uma menina vira mulher, tem de cortar o cabelo bem curto e ficar uma semana em casa. As pessoas veem o cabelo curto e sabem que agora ela é mulher, por isso ela fica com vergonha.”


Maité fez o que fazem todas as mulheres que cumprem os preceitos da cultura guarani. Cortou o cabelo e resguardou-se, “porque a natureza a mudou”. Tupã, o tio, também fez o que fizeram todos os homens guaranis antes dele. “É quando a gente passa da adolescência para virar homem, pelos 14, 15 anos. A minha mãe é tradicional e ela pedia para eu ficar em casa um mês, dois meses, sem sair, sem pescar, sem caçar. A gente não pode ir no rio nem na floresta porque a gente espalha nosso cheiro e atrai muito bicho. Se eu atrair uma cobra, um sapo, ela vem até mim, eu posso me apegar ao bicho, levá-lo para minha casa e se eu me apegar posso ficar muito louco e me matar. E depois que eu morrer posso virar esse sapo. Já vi isso aqui. Eu tinha 10 anos e aconteceu nesse cemitério que a gente tem. Eu vi esse acontecimento.”


Tupã conta a sua história como se quisesse também traduzir para português a tal cadência que só é possível em guarani. Para um estranho, esse momento é o da percepção do corte, da certeza da impossibilidade de chegar à verdade que Tupã quer fazer passar a quem não é guarani. Como toda a tradução, esconde uma maior ou menor dose de equívoco inerente ao acto de verter de uma língua não apenas palavras, mas uma cultura. No caso, é mais do que isso: as palavras de Tupã também cruzam uma linha entre realidade e ficção, factos e pensamento mágico; semeiam múltiplos sentidos que podem ser capazes de activar a imaginação e, se forem palavras escritas, podem ser literatura.


Tupã, como Maria Kerexu, como Olívio Jekupé — os seus pais —, fala como quem escreve, transportando quem o ouve para a dimensão onde se criam os mitos. “Que nem minha mãe, eu sou um pouco contador de histórias. Sempre ouvi muita história. O primeiro texto que escrevi foi sobre esse acontecimento muito forte e que vi de longe porque era criança e não podia entrar”, continua, remetendo para o episódio do homem que “virou” bicho no cemitério. “Lembro que quando acontece isso a gente tem de tirar o corpo da terra e queimar tudo, porque se vira bicho é para comer gente, é porque não morreu. O bicho sai e fica por aí e a gente tem de matar.” Tupã tinha 10 anos, a idade de Maité, e escreveu o seu primeiro texto sobre isso, com palavras em guarani e português. Anos mais tarde, quando “virou” homem e a mãe lhe pediu que ficasse em casa, observou o mito que ele próprio redigiu e obedeceu. Essa é uma reivindicação dos guaranis e das restantes 303 etnias indígenas no Brasil: terem as ferramentas para poder escrever as próprias narrativas e dar a sua versão da História.


Tupã, Maité e Olívio têm telemóvel, escrevem em computador, tocam violão, vestem-se como qualquer pessoa numa qualquer cidade do mundo. Olívio Jekupé explica: “A gente quer que os nossos jovens tenham cultura. Aqui na aldeia há uma cultura forte, a mentalidade é guarani, não é a da cidade. Agora a gente não pode fugir a certas coisas, elas existem, mas é preciso preservar a cultura e, em particular, a cultura guarani. Muita gente vê e diz: ‘esses aí nem parece índio’, por causa do cabelo cortado, do chinelinho no pé. Não importa, se você tem a cultura o resto vai acontecendo. Se perde, é ruim. Há aldeias em que os índios já perderam toda a cultura, perderam a língua. Se um índio perde a língua… ah, a mentalidade vem da língua.”


Seria então isso que se poderia ler no rosto de Maité? Uma pertença? Os estereótipos não costumam ter nome nem expressão nos olhos, uma língua inteira em que comunicar e perceber o preconceito, por exemplo. “Na cidade é uma coisa comum. Olham com uma visão superior a nós e por causa dessa visão o índio é sempre mal visto. Quando vou dar uma palestra percebo isso, eles rindo, ‘será que sabem falar?’ Quando me apresentam como escritor, ou ao meu filho, ficam de olho arregalado e aí já começa a mudar. Mas quando vê um índio já tem o preconceito. E o índio quando começa a perder a sua língua também passa a ter uma relação de superioridade em relação ao outro índio. O próprio índio passa a cometer o erro. De tal forma que muitas vezes existe preconceito dentro da própria aldeia.”


Já se ouviu falar de tudo mas nunca contado assim. Os olhos sem rancor, apenas uma tristeza funda, um lamento cheio de dignidade. Está de cócoras, à altura de quem o ouve. “Há um posto de saúde aqui na aldeia. Agora dizem que querem acabar com prestação de saúde nas comunidades indígenas, que o índio vá e pegue o ónibus até Parelheiros, fazer como todo o mundo faz. Mas isto foi uma conquista. A gente sabia do sofrimento antigamente, ir lá na cidade, a pé, depois chegar e ainda sofrer o preconceito. Os médicos nem olhavam na cara da gente. E agora? Vai acabar?”


Olívio não tem resposta, quer apenas que o escutem, que saibam a sua versão de uma história em que ele e os que são como ele têm sido subalternizados. “A minha intenção sempre foi a de ser escritor; escrever e publicar livros, porque sempre acreditei que a literatura tem que chegar no povo, porque chegando no povo as pessoas vão valorizar mais o índio. O índio é sempre desvalorizado. Por quê? Por falta de conhecimento. O índio no Brasil é visto como selvagem, preguiçoso, cachaceiro, vagabundo. E quando o índio é inteligente falam que não é mais índio. Quando sabem que estudei na USP e sou escritor, dizem: ‘então o cara não é índio’.”


Olívio Jekupé é escritor, estudou Filosofia na Universidade de São Paulo, tem 18 livros publicados, um com a mulher, Maria Kerexu. “Pode-se dizer que ela é a primeira escritora indígena no Brasil que não sabe ler nem escrever”, diz, sorriso irónico a tentar encontrar os olhos de Maria que não desvia a atenção da roca que vai tecendo, um dos brinquedos de bebé que depois irá vender nas feiras. O artesanato é a maior fonte de receitas da aldeia. Ela tem as mãos ágeis, olhos e ouvidos atentos a tudo ao redor. Mas não os desvia para confirmar ou desafiar a afirmação do marido. Apenas se notou orgulho, tanto na procura dele como no aparente descaso dela. O livro existe, chama-se A mulher que virou urutau e foi a resposta a uma humilhação.


Antes, falemos do lugar onde estão. Chama-se Krukutu. É uma aldeia no extremo sul do município de São Paulo, junto à fronteira com São Bernardo do Campo. É uma paisagem de mata atlântica, a que sobreviveu ao avanço dos cafezais, do desmatamento, das queimadas. Fica a pouco mais de 50 quilómetros do centro de São Paulo e a duas, três, quatro, cinco horas de distância pela Rodovia dos Imigrantes que termina na cidade costeira de Santos. O tempo depende do fluxo do trânsito. É um sobe e desce constante entre construção sempre densa. Primeiro, prédios, depois aglomerados sem ordem, até às casas de um ou dois pisos pintadas de cores garridas, lojas de quase tudo, miniesplanadas de improviso num passeio ou na sarjeta, gente a caminhar com qualquer coisa na mão, paragens de autocarros com filas, um formigueiro com 10, 20, 30 quilómetros, até a cidade dar tréguas ao mato. Perto de uma povoação chamada Parelheiros, há um desvio para uma estrada de terra, ainda gente a caminhar nas bermas, uma placa a anunciar “Vende-se Pão” e quatro quilómetros de buracos e pó até chegar a Krukutu, onde vivem “60 famílias, ou 270 cabeças”, precisa Arlindo, segurança da aldeia e responsável por anotar “todos os nomes, datas de nascimento e morte” de quem vive ou viveu por ali.


Arlindo veio do Paraná, o estado vizinho a sul, faz 10 anos. “Aqui tem mais recursos. Lá a gente faz trabalho na lavoura, pesado, e não ganha nada. Isso é que é problema”, diz ao passar pelo posto de saúde, pela escola, a casa de reza, o centro da aldeia que congrega todos os serviços comunitários. “Aqui tem mais criança do que adulto”, continua. Ele tem quatro do segundo casamento e oito netos no Paraná. Cala-se. Só se ouvem os passos pesados de Arlindo, o chilreio dos pássaros e finalmente uma frase: “Isso dá saúde pra gente.”


Isto ainda é São Paulo. Não é bem uma certeza, é mais uma ladainha que se repete mentalmente até ganhar um corpo, um halo de verdade. Isto ainda é São Paulo. Isto ainda é o Brasil: tempos, culturas, línguas sobrepostas à procura de um rumo, a construir uma identidade comum.


AS VERSÕES DA HISTÓRIA
“Ás mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas.
Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis,
São Paulo.

Senhoras:
(...) É bem verdade que na boa cidade de São Paulo — a maior do universo, no dizer de seus prolixos habitantes — não sois conhecidas por ‘icamiabas’, voz espúria, sinão pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas.”