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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Marcelino Freire conversa com Regina Ribeiro


Marcelino Freire
conversa com
Regina Ribeiro

13.8.2008

O escritor Marcelino Freire conheceu o mundo por Sertânia, miolo pernambucano. O nome Sertânia ainda está pendurado no ouvido e na memória do autor. Mas, é só. Saudades, tem nenhuma de lá. Morou em Paulo Afonso, na Bahia, quando era menino e se embrenhou em Recife onde começou a fazer teatro, pela escrita. Quando quis publicar, foi embora para São Paulo, aos 23 anos. É de lá que despacha uma literatura ligeira, aperreada, que parece saltar obstáculos, digo, pontos. Como a que está no livro Rasif, mar que arrebenta, que acaba de lançar. Nele, Marcelino lapida, ainda mais, o contorno que dá à palavra. Aliás, na narrativa deste autor, a palavra é mínima, fugidia, trepidante. "O que eu escrevo é música, é repente", afirma Marcelino, nesta entrevista, por e-mail ao O POVO, ainda lambendo a cria, que ganhou ilustrações do artista pernambucano Manu Maltez.

Em 2006, foi vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura com o livro Contos Negreiros. Mas antes disso, EraOdito, em 2002, começou a lhe abrir portas. É considerado pela crítica um dos destaques entre os contistas da sua geração. Nela figuram Marçal Aquino, Luiz Raffato, Marcelo Mirisola, Rubens Figueredo, entre tantos. O jeito despachado e um tanto quanto abusado soa direto na literatura de Marcelino, feita à base de personagens absolutamente marginais, errantes, sem lugar no mundo, mas com a alma pura de um poeta. A poesia, Marcelino vai buscar em Manuel Bandeira, a quem conheceu menino e nunca mais largou. Já disse que quis ser bandeira: "poeta e doente. Tuberculoso". A tuberculose não o quis, a poesia, sim.

"Meu novo livro é um livro "estrangeiro", pontua Marcelino, que não esconde o sentimento de ser pernambucano em São Paulo. "Continuo sendo um estrangeiro por aqui". É este tal sentimento de desambientação que explode no conto Meu homem-bomba; que não se acomoda como no texto Da paz; que é um estranho em Júnior; que enlouquece no conto I-no-cen-te; que às vezes segue indiferente, como os personagens de Chá. Estão lá os travestis, a arraia miúda, os que não têm uma gota de esperança, os inocentes que ainda esperam Papai Noel. A rapidez que com que se lê, não combina com o incômodo que permanece. Aos poucos, Rasif vai compondo uma colcha de retalhos feito com vida e palavra.

O POVO - Com você, o terreno da literatura é acidentado. O ponto faz as vezes de rochedos (pequenos, talvez, mas rochedos). Por que é assim?
Marcelino Freire - Porque eu respiro assim. Porque uma palavra minha nunca está estacionada em um lugar. Ela salta, dança, se suicida. É preciso ler os meus contos com os ouvidos bem abertos. O tempo todo eu estou "improvisando". Rebolando, embolando em chapa quente. Em pedra quente, embaixo do sol. O que eu escrevo é música, é repente. Acho que é por isso que o meu ponto não é fixo, não é final...

O POVO - Como se deu Rasif?
Marcelino - Eu sempre penso em um livro para os contos que tenho disponíveis, entende? A maioria de uns contos meus, recentes, falava de homem-bomba, guerras nucleares e particulares. Falava de uma língua perdida, de um povo distante. Então pensei em um livro para esses contos. Um livro sobre fim de mundo, final de existência. Aí, falando com uma amiga escritora, Adrienne Myrtes, ela me lembrou que a palavra "Recife" tem origem no árabe "Rasif". Pronto! Eu tenho a minha Árabia própria, que maravilha! E com essa onda de livros árabes, pensei, por que não colocar também a minha pipa para voar [risos]? Brincadeirinhas à parte, gostei disto. Deste lugar chamado "Rasif". E ali fiz habitar os meus personagens. O subtítulo "Mar que Arrebenta" é o significado, no tupi-guarani, da palavra "Pernambuco". Achei legal isto, esta geografia, este cu de mundo que recriei.

O POVO - Em praticamente todos os contos de Rasif, os personagens estão em estado pleno de discordância, há um desconforto latente, como se viver fosse experimentar apenas a estranheza de estar no mundo. Esse é um sentimento seu?
Marcelino - Sim, você acertou em cheio. Há um desconforto, uma desambientação, um desenraizamento. Eu vivo em São Paulo desde 1991. Continuo sendo um estrangeiro por aqui. Meu novo livro é um livro "estrangeiro". Tem línguas mortas, povos antigos, gritos pré-históricos. Minha vontade é sair "gritando, urrando, soltando tiro", como bem diz um dos meus personagens. Se eu não fosse escritor, eu seria um homem-bomba. Acho muito corajoso, de uma poesia trágica ser um homem-bomba, não acha?

O POVO - Marcelino, você é da chamada Geração 90. Entre eles muitos deiraram vários cantos do Brasil e foram para São Paulo. Você considera que faz parte de uma geração que trouxe novos elementos para uma literatura brasileira em crise?
Marcelino - Não sei se eu trouxe "novos" elementos. Trouxe algumas coisas assim, comigo. Mais crises, talvez. Um linguajar, uma cantoria, uma agonia, um aperreio qualquer. Mas esta é só a minha maneira de escrever, de me vingar. Eu não me canso de dizer isto: escrevo porque quero me vingar de algo. E essa vingança veio cheia de gingado. Eu trouxe na bagagem do meu ouvido esse jeito de narrar, de construir uma história, uma memória, uma derrota, sei lá...

OP - Você participou na semana passada de uma feira de livro, aqui pertinho em Mossoró; vai participar da mega-bienal de São Paulo que abre esta semana. Com tanta feira de livro no Brasil, você acha que eles, os livros, estão em alta?
Marcelino - A-do-rei Mossoró! Mulher, que cidade maluca! E fiquei com a lembrança do cangaceiro Jararaca no meu juízo [ele foi morto em Mossoró e virou "santo" por lá]. Gosto que festas literárias aconteçam. Em Paraty, em Mossoró, na Cochinchina. Quanto mais a literatura estiver circulando por aí, melhor para o livro, para o escritor, para o leitor. Não vejo mal nenhum nisso. Essa suruba toda...

OP - Como editor, você coordenou a edição da antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. Agora, está preparando a edição de uma antologia de contos gays. O escritor Flávio Moreira da Costa já fez quase tudo em termos de antologias, aliás, elas nascem a toda hora, encerrando século, temas, o diabo. Para um leitor, qual a vantagem desse tipo de trabalho?
Marcelino - Nem eu agüento mais antologias [risos]. Mas acho boa essa reunião de contos em um único livro. É bom para pesquisar, para conhecer vários autores de uma paragrafada só. Como toda antologia, depende de quem esteja organizando a coisa. Sobre a antologia de contos gays, que estamos organizando eu e o Santiago, ela ficou para o ano que vem. Está uma beleza! Chama-se "Contos para Ler Fora do Armário".

OP - O que aconteceu com o romance que você começou a escrever?
Marcelino - Meu romance está engavetado, largado no buraco-negro do meu computador. Não sei quando vai sair. Eu não tenho disciplina, não tenho fôlego para narrativas longas. Continuarei nos meus contos/cantos/ladainhas curtas, ao que parece. A merda de escrever um romance é que a gente termina um capítulo e vai dormir com um outro. Os personagens ficam navegando no nosso juízo. E eu quero dormir, não quero escrever...

SERVIÇO
Rasif. mar que arrebenta
Livro de contos de Marcelino Freire. Ilustrado por Manu Maltez. Editora Record.
124 pgs. R$ 26

Manu Maltez é músico, arranjador e ilustrador. No livro que Marcelino Freire está lançando, Rasif.O Mar que arrebenta, Maltez tascou as gravuras que cercam, finalizam e complementam a narrativa. O convite para ilustrar a obra surgiu há dois anos. A conversa entre os dois foi se fortalecendo até que texto e imagem ficassem de mãos atadas, emaranhadas. Manu construiu os desenhos. Marcelino continuou burilando os textos. No final, as gravuras em metal arrebatam e envolvem Rasif. "Gosto de pensar que as imagens ficaram no livro como se fossem 'visões', elas não ilustram situações ou cenas dos contos, mas um possível imaginário de seus personagens", explica ele, por e-mail ao O POVO. (Regina Ribeiro)

O POVO - Como foi o seu encontro com o Marcelino para a realização de Rasif?
Manu Maltez - Marcelino me convidou para fazer o livro no final de 2006 (eu já tinha lido seus outros livros e gostava deveras de sua escrita), e me mostrou o material ainda não totalmente fechado (alguns novos contos foram entrando e outros saíram), e eu mostrei alguns desenhos que achei que tinham proximidade com a coisa, e realmente vimos que essa proximidade já havia de antemão. O "arabesco dos desenhos", seu grafismo visceral, orgânico, esses seres, urubus que são mar, que são mãos que são garras que são asas, uma grande parte disso já havia. Tem gravura inclusive que já existia antes do livro, como a que aparece depois do conto We speak english, ou como a imagem da capa que era um desenho, que depois passei para gravura e virou outra coisa. Assim decidimos que eu não ilustraria nenhum conto especificamente, apenas juntaríamos os dois universos, que se complementariam, um enriquecendo o outro. A partir daí, decidi que faria o livro todo com gravuras em metal, pois era algo que há muito tempo estava querendo fazer, e achei que a própria técnica da gravura (raspando, cortando, jogando ácidos sobre a placa de cobre) tinha a ver com o livro, com seus embates e conflitos, seu título rascante.

OP - Em vez de abrir, as imagens encerram os textos, o que torna a imagem um complemento da palavra. Foi assim que a estratégia foi pensada entre vocês?
Manu - Isto também pode ser visto de uma outra forma e vice-versa, uma vez que a primeira coisa com que o leitor se depara é a gravura da capa, que aparece novamente na abertura do livro antes dos contos. Gosto de pensar que as imagens ficaram no livro como se fossem "visões", elas não ilustram situações ou cenas dos contos, mas um possível imaginário de seus personagens, como eles seriam por dentro, e essa é apenas uma das possíveis leituras, ficou uma coisa bastante sugestiva. A nossa "estratégia" ao longo de mais de um ano de elaboração do livro, na verdade foi a de sempre manter o diálogo, Marcelino trazendo textos novos e revistos, e eu mostrando minha produção de gravuras. Fizemos também ao longo desse tempo, apresentações visuais/lítero/musicais do livro em diversos locais da cidade, com Marcelino recitando, projeções das gravuras e eu tocando contrabaixo e piano (sou músico/compositor) e outros músicos convidados. Assim, foi um processo demorado e cheio de diálogos, experimentações e interatividade, e ao final desse tempo, fomos juntando as coisas, e procurando uma ordem natural entre elas. Na verdade são duas linguagens completamente diferentes, que funcionam também muito bem separadas, mas que ganham uma dimensão toda especial juntas num mesmo livro.

O POVO - O texto do Marcelino é curto, pincelado de pontos, cortando o pensar. Esse dados poético da narrativa teve qual efeito sobre as imagens?
Manu - A grande graça é que são dois universos de linguagens muito diferentes mas com muita coisa em comum, inclusive na parte formal/estrutural, existe uma escrita no desenho, e um desenho na escrita, ... é difícil explicar.