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segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

É PRECISO LEMBRAR O QUE VALE SER LEMBRADO : AUGUSTO DOS ANJOS -Capturas do Face F Mattos






Augusto dos Anjos1884-1914 in http://bit.ly/2m8szNP

Nada como o poeta e sua atenção ao tempo, à  história  poética,nada como ser atento  ao que se escreve  de bom, de faro certeiro, assim é o professor Florisvaldo Mattos, sempre presente aqui neste blog, seu faro é  de um esteticista inteiro e nos ensina e dá-nos lições, mesmo por outras bocas, juntando as maravilhas, como frutas maduras de sabores diversos - como Augusto dos Anjos  por Alexei Bueno..".Se essa vivência trágica é, ao nosso ver, o fundamento mesmo da obra de Augusto dos Anjos, outra característica sua serve para dar à sua dor a ressonância universal e mesmo cósmica que a caracteriza"

Paulo Vasconcelos



É PRECISO LEMBRAR O QUE VALE SER LEMBRADO
Magnífico e veraz este ensaio do excelente poeta, crítico e historiador literário Alexei Bueno (um dos nossos maiores), publicado em seu blog, sobre a gênese da poética do grande Augusto do Anjos, que considero, como ele próprio, o mais alto representante do expressionismo na poesia brasileira.
Parabéns, Alexei, salve, salve! (Muito obrigado, poeta Ruy Espinheira Filho, por me ter enviado o link por e-mail).
Segue abaixo o texto, ilustrado com uma pintura do que considero o maior expressionista baiano, Sante Scaldaferri (1928-2015).


Sante Scaldaferri (1928-2015).

AUGUSTO DOS ANJOS: ORIGENS DE UMA POÉTICA
A poesia de Augusto dos Anjos nos impressiona, até hoje, pela extrema especificidade do indivíduo que a compôs, pelo caráter de independência extrema, quase de geração espontânea, com que ela irrompeu no panorama da literatura brasileira. De fato, essa independência do indivíduo pensante, tão ou mais espantosa do que a do poeta que ele era, justifica imediatamente o título do Eu, provando de resto a aguda autoconsciência de seu autor.
Por mais que haja influências do inconsciente na gênese desses poemas, como em geral sempre há quando se trata da grande poesia, é inegável que, uma vez realizada, cada obra de Augusto dos Anjos era friamente apreendida pela sua cortante inteligência, que não deixaria de perceber, entre características muito menos óbvias, a estranheza profunda que causaria a seus contemporâneos, fato mesmo gerador de dois significativos poemas, “O poeta do hediondo” e “Noli me gangere”, cruéis e exacerbados auto-retratos, menos de como ele deveria se sentir do que de como ele sabia que o sentiriam, e quase uma justificativa prévia de quem se sabia responsável por ultrapassar as fronteiras temáticas do recomendável e do aceito.
Em muitas coisas, no entanto, o poeta de “Os Doentes” é visivelmente um homem de sua época e de seu meio, como não poderia deixar de ser, e características suas, do pensador e do poeta, são encontradas em alguns de seus contemporâneos, como facilmente se demonstra. Uma das bases primordiais de sua visão do mundo, e, por conseguinte, de sua obra, o seu propalado cientificismo, caracteriza bem o indivíduo educado nos últimos anos do século XIX, o século por excelência do ufanismo científico, da euforia do conhecimento e da ilusão do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria, crenças cruelmente frustradas pelo advento bárbaro da Primeira Guerra Mundial, no ano mesmo da morte do nosso poeta.
Entre diversas generalizações filosóficas possíveis em voga naquele instante, desde o positivismo até o marxismo, Augusto dos Anjos, de maneira bastante sintomática, adotou como crença pessoal os sistemas que mais dariam ensejo a uma visão predominantemente mística e totalizadora do universo, ou seja, o Evolucionismo, vindo de Darwin mas sobretudo filtrado por Spencer, e, mais decisivamente, o Monismo, o grande sistema unificador da fenomenologia universal fervorosamente propagandeado por seu criador, Ernest Haeckel, racionalização materialista carregada de grande possibilidade de expansão religiosa, e construída aliás sobre diversas premissas biológicas alfas ou erroneamente interpretadas.
O que nos parece inegável no caso de Augusto dos Anjos é a sinceridade primordial de sua adesão intelectual e mesmo emocional aos postulados dessa visão de mundo, residindo aí, inclusive, a sua capacidade espantosa de escrever alta poesia a partir dos mesmos, fato que elimina qualquer suspeita de um temperamento de poseur ou de pedante na sua exibição de pensamento científico. Se na questão do léxico, sobretudo talvez em sua prosa, nos parece que o poeta sucumbiu a uma irresistível compulsão a épater le bourgeois com sua esmagadora cultura, parece-nos que na sua poesia o uso do mesmo vocabulário, mitigado aliás na última fase, é fruto de um fluxo de sensibilidade absolutamente autêntico, não só dos conceitos inerentes aos vocábulos, mas também do poder encantatório estranho e musical de seu arcabouço fonético. A presença de semelhante uso até em sua correspondência pessoal, escrita sem nenhuma intenção de fazer literatura, nos prova, aliás, o quão natural era para ele tal processo, apesar do tom estranhíssimo que adquire no âmago de uma epistolografia familiar.
Parte da incompreensão que se criou em torno desse uso de vocabulário científico, mais especialmente nomes de espécies e termos filosóficos, nasce, na verdade, de uma certa preguiça mental do leitor em relação a vocábulos que lhe causam estranheza e cuja utilização lhe parece despropositada e inútil. A incorporação, no entanto, desses seres ínfimos, desses microorganismos que nos são tão estranhos quanto os próprios nomes que os designam, está perfeitamente no plano do poeta, porta-voz da essência de todos os seres, e não apenas do homem. A originalidade dessa posição é marcada pela originalidade sonora do nome das espécies. Assim, quando em “Budismo moderno” o poeta se refere às “diatomáceas da lagoa”, cuja cápsula criptógama é bruscamente desfeita pelo contato involuntário de uma mão humana na superfície da água, ele cria uma originalíssima metáfora de sua própria fragilidade, que um golpe qualquer de uma força superior pode destruir, ao mesmo tempo que se identifica, na solidariedade de condenados à morte, a essas vidas mínimas que também o são, o mesmo que ocorre em “Alucinação à beira-mar”, onde os “malacopterígios subraquianos / que um castigo de espécie emudeceu” lhe “pareciam também corpos de vítimas / condenadas à Morte, assim como eu!” Como podemos ver, nenhum exibicionismo gratuito, nenhuma proximidade do bestialógico, mas apenas um uso radicalíssimo das infindáveis possibilidades do léxico, de resto estatisticamente muito pequeno em relação ao total de seu vocabulário para justificar a fama imerecida de delírio vocabular que muitas vezes lhe imputaram.
O que é importante ressaltar é a maneira como o Monismo evolucionista se transformou nas mãos de Augusto dos Anjos em uma espécie de sistema místico totalizador, que lhe serviu de base tão legítima para o exercício estético quanto diversos sistemas religiosos serviram para poetas místicos de todos os tempos. A sensibilidade exacerbada para a percepção da energia potencial oculta em toda a matéria (“O lamento das coisas”, “As montanhas”, “Numa forja”, “O pântano”, “A floresta”, etc.) é uma de suas características mais marcantes. Em contrapartida, porém, a esse mecanismo quase otimista do caráter evolutivo do universo, sobrevive em seu espírito um forte elemento de negação da vida enquanto criadora do sofrimento, um budismo de origem claramente schopenhaueriana, como encontramos também em Antero de Quental ou Raimundo Correia (“A um gérmen”, o “Soneto” ao filho natimorto, etc.), que se inclui igualmente entre as influências gerais do pensamento finissecular. Dessa maneira, o que verdadeiramente podemos detectar na visão do mundo do poeta, é um movimento pendular entre a adesão a um postulado filosófico e a descrença parcial ou total na sua eficácia, bem como na de todos os outros sistemas, quando confrontados com a simples e implacável presença da maior das evidências da vida e do universo: a morte, destruidora paciente e impiedosa de todos os esforços e devaneios humanos.
Esse caráter pessimista da poesia de Augusto dos Anjos quanto ao pretenso poder da ciência contra o mistério do universo, essa falta de crença na eficácia de todo o esforço humano, é uma das suas características que mais o aproximam de nós, exilados há muito do ingênuo ufanismo cientificista do século passado. Tal como o Fernando Pessoa que concluía “Não procures nem creias. Tudo é oculto” e afirmava:
Cega, a ciência a inútil gleba lavra.
(“Natal”)
o poeta paraibano, convicto igualmente da impotência da cognição, escrevia:
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra...
(“As cismas do Destino”)
Revelando como, muito mais do que poeta da morte, como popularmente o cognominaram, Augusto dos Anjos é o poeta do fracasso do enfrentamento do mistério, da impotência perante o incogniscível, conclusão igual à que encontraria qualquer místico; e a morte comparece, antes de tudo, para esse grande radical, como o último e maior de todos os fracassos, como a mais absoluta e definitiva forma de impotência. Poema central dessa tendência, entre inúmeros outros e fragmentos de outros, é o soneto “O mar, a escada e o homem”, bem como o “Solilóquio de um visionário”.
Como exemplo da primeira tendência em poetas seus contemporâneos, ou seja, a percepção panteísta ou potencial do universo, podemos citar o belo soneto do poeta mineiro Augusto de Lima (1860-1934), poema no qual, com um tratamento mais clássico, encontramos um tema muito caro ao nosso poeta:
NOSTALGIA PANTEÍSTA
Um dia, interrogando o níveo seio
De uma concha voltada contra o ouvido,
Um longínquo rumor, como um gemido,
Ouvi plangente e de saudades cheio.
Esse rumor tristíssimo, escutei-o:
É a música das ondas, é o bramido,
Que ela guarda por tempo indefinido,
Das solidões marinhas de onde veio.
Homem, concha exilada, igual lamento
Em ti mesmo ouvirás, se ouvido atento
Aos recessos do espírito volveres.
É de saudade, esse lamento humano,
De uma vida anterior, pátrio oceano
Da unidade concêntrica dos seres.
(Símbolos, 1892)
ou o poema seguinte, de Hermes Fontes (1888-1930), um dos literatos que melhor compreenderam o Eu quando de seu aparecimento:
A PRIMEIRA PEDRA
― Corpo que se encontrou abandonado de alma,
Corpo que não se pôde à ação do ar decompor ―
Uma pedra é uma vaga imóvel... É uma calma
Recordação do mar de que foi leito a estrada,
Uma vaga do mar dos Tempos, retardada,
Que por aí ficou sem sentidos, parada,
Adormecida por um íntimo torpor.
É a Impassibilidade esculturada. Dorme.
Secou-lhe o sangue, e não consegue apodrecer.
Vive? É possível. Morre? É provável. Conforme
A Vida e a Morte... A pedra é um ponto de partida.
É o princípio da Morte, é o princípio da Vida...
É um gesto contrariado, é uma força contida,
É o Ser que adormeceu em caminho do Ser...
(Gênese, 1913)
Prova, afinal, da índole essencialmente mística do soi disant materialismo de Augusto dos Anjos encontramos no belíssimo soneto “Ultima visio”, no final de “Os Doentes” ou em arroubadas e impressionantes estrofes como esta:
Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
ou como essa outra (que julgamos muito mais indicada para ser escrita no seu túmulo do que o último terceto de “O poeta do hediondo”, que de fato lá está):
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
Esse sentimento de onipotência, esse êxtase do absoluto que é parte inseparável do espírito de Augusto dos Anjos, é que deu origem à contradição trágica que é a base mesma de toda a sua poética. Materialista, acreditando racionalmente em um evolucionismo panteísta onde só a generalidade das formas universais progredia e sobrevivia, o poeta era obrigado a conscientemente se tomar por um efêmero, aleatório e ínfimo acidente genético na grande cadeia das espécies, condenado sem apelação à desaparição total enquanto especificidade individual. O que lhe era no entanto convicção racional, não lhe podia ser vivência subjetiva. Ciente, portanto, da morte implacável, e crendo nela com a fé com que cria no seu bem construído sistema, e jamais indiferente a esse ou a qualquer outro fato, como ser perscrutador das essências, tudo aliado à uma sensibilidade desmedida, dotada de uma capacidade de representação requintadíssima, podemos sentir com uma nitidez quase solidária o paroxismo de angústia que tal inadequação entre o raciocínio e a sensibilidade deve ter causado ao poeta da “Eterna mágoa”.
Foto de formatura de Augusto dos Anjos, com dedicatória para seu amigo Leonardo Smith, editor do Nonevar, no qual o poeta muito colaborou. (Coleção do autor)
Se essa vivência trágica é, ao nosso ver, o fundamento mesmo da obra de Augusto dos Anjos, outra característica sua serve para dar à sua dor a ressonância universal e mesmo cósmica que a caracteriza. Tomando nas próprias costas a missão de ser a consciência e a voz da Dor universal, desde as formas inorgânicas até ao homem e mesmo ao cosmos, o poeta se torna o possuidor empático e exasperado do tesouro de misérias sociais, fisiológicas e genéticas que a realidade brasileira lhe entrega como espetáculo cotidiano e terrível. Daí tem início o desfile expressionista de bêbados, idiotas, tuberculosos, palermas, leprosos, prostitutas, estropiados, abortos, malucos e muitos outros que invadem com grande freqüência partes das mais características de sua poesia. O mesmo fenômeno pode ser explicitamente encontrado em trechos de Antônio Nobre, como na “Lusitânia no Bairro Latino” ou no Cesário Verde da segunda parte de “Em petiz”. De fato, sentimos muita coisa da temática e do ritmo de Augusto dos Anjos em estrofes como estas:
Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas pútridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!
Vícios, sezões, epidemias, furtos
Decerto, fermentavam entre os lixos;
Que podridão cobria aqueles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!
Da mesma maneira o sistema narrativo do passeio noturno, de uso tão geral na obra do poeta do Eu, é o mesmo utilizado por Cesário Verde no “Sentimento de um ocidental”. De fato, todos os poetas mencionados, como o Antônio Nobre que exclama: “Qu’é dos pintores do meu país estranho?/ Onde estão eles que não vêm pintar?” referindo-se ao cromatismo das dermatoses e ao pitoresco dos desgraçados da rua, possuem essa compreensão pós-baudelairiana das possibilidades estéticas do horrível, que atingiu a poesia ocidental depois de “Une charogne”. Sua origem no entanto, mesmo que sempre marginal ao classicismo, é velha como a arte, pelo menos tão ancestral quanto o pé de Filoctetes, explodindo periodicamente no memento mori da arte cristã ou no mórbido do maneirismo e do barroco, em jacentes cobertos de vermes ou nas moralidades claro-escuras de um Valdés Leal.
De Poe até Baudelaire, depois através de todos os “decadentes”, de um Richepin da Chanson des gueux ou de um Rollinat de Les névroses, essa audácia da análise social dos naturalistas, alcança a poesia brasileira por meio dos nossos próprios “decadentistas”, mais uma prova da filiação simbolista do expressionismo de Augusto dos Anjos. Basta, para a compreensão disto, o exame de um poema como “Ébrios e cegos” de Cruz e Sousa, o último de Faróis, poesia sob todos os aspectos extraordinária, onde, de maneira pessoalíssima, o Poeta Negro atinge um expressionismo torturado, trágico, quase surrealista.
A união entre essa liberdade de tratar da maneira mais crua o espetáculo da miséria humana com a adesão a um sistema científico totalizador e ateu, sem haver no realizador de tal conjunção qualquer possibilidade de apaziguamento subjetivo dentro dela, eis, na nossa opinião, a origem primordial da poética do Eu.
Formalmente, essa essência foi vazada numa sonoridade rígida e tensa, com recursos extremos na busca da expressividade sonora ― uso primordialmente simbolista ― tudo aprisionado no entanto em uma métrica ortodoxamente parnasiana. Augusto dos Anjos é, de fato, o rei da sinérese implacável na poesia brasileira, mais do que qualquer parnasiano (o que lhe chega mais perto nesse aspecto talvez seja o pouco lembrado Luís Carlos), sendo também, mais do que qualquer simbolista, o rei da aliteração. Raramente encontramos um hiato sobrevivente à sua metrificação impiedosa.
De um virtuosismo no verso praticamente insuperável, embora de variedade bastante limitada, a roupagem normal da poesia de Augusto dos Anjos é o seu sonoríssimo e persistente decassílabo, onde as metáforas mais espantosas e exatas se amontoam quase clustrofobicamente, dando-nos sempre a impressão de uma força agrilhoada, de um infinito preso dentro de uma camisa de força, na iminência esperada de explodir, o que é no mínimo um registro perfeito para conter a sua temática de ânsia insanável do absoluto e desespero concreto. Dentro desse ritmo implacável, inseparável dele, é que o leitor encontra o fulcro talvez de sua realização estética, uma exatidão vocabular sem paralelo, iluminadora, acima de todo o uso padronizado da linguagem poética, quase como se o autor escrevesse numa língua original, com uma percepção virgem do sentido das palavras, do mesmo modo que com um olhar virgem do espetáculo do mundo, fenomenologicamente puro e esmiuçador. De fato, o poeta que cria quase a cada verso expressões de inesquecível exatidão, uma “espionagem fatídica dos astros”, um “corpo ubiquitário do Criador”, ou essa espantosa “noumenalidade do NÃO SER”, entre centenas de outras, teria que forçosamente realizar um livro da força do Eu, cuja uniformidade de grande poesia supera, no total, mesmo a dos maiores livros da poesia brasileira, um Espumas flutuantes, um Últimos sonetos, um Últimos cantos, obras máximas onde, mesmo assim, a voltagem às vezes desce um pouco, comparados com a unidade de força do Eu, só encontrada em pouquíssimos livros, em um Clepsidra, em um Mensagem. Materialmente, para a compreensão técnica dessa forma eficaz e original em que se expressou o poeta de “A árvore da serra”, entre diversos estudos a ela dedicados retornamos sempre ao ensaio clássico de Manuel Cavalcanti Proença., O artesanato em Augusto dos Anjos.
Essa limpeza de visão que mencionamos, essa capacidade de ver, livre de qualquer roupagem eufemística, o real ― esse estado ofuscante que a maioria dos homens, julgando-se seus plenos possuidores, jamais conseguiu nem rapidamente entrever ― é a origem, uma vez vazada na mais plena eficácia verbal, do poder emocional da poesia do Eu. Vejamos, por exemplo, o grande poema escrito para o seu filho morto aos seis meses de gestação:
Soneto
Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos.
2 de fevereiro de 1911.
Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!
Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
A não ser para os irremediavelmente refratários ao reconhecimento do lado relativo, frágil, trágico, e no entanto tão diariamente presente, da existência humana, estamos perante uma obra de arte de extrema exatidão, tanto na percepção do real quanto no sentimento dela conseqüente. Estamos, ao contrário de todo o vago, de todo o hermético, perante uma iluminação quase excessiva, uma clareza superior à da apreensão normal da consciência, uma poesia direta e iluminadora. O soneto se inicia, cruamente, por duas definições em seqüência, cada uma um verso, onde cada palavra, diríamos mesmo cada sílaba, cumpre uma insubstituível função conceitual e emocional. Depois de um perfeito desenvolvimento, chegamos então aos tercetos, onde a pungência trágica e a eficácia vocabular atingem os ápices da grande poesia, desde a definição exata e quase tátil do 9º verso até a pergunta terrível dos dois seguintes. “Em que lugar irás passar a infância, / Tragicamente anônimo, a feder?!” Que ironia maior que essa palavra “infância”, usada num sentido puramente cronológico, para quem nunca a terá? E que coisa mais dolorida que esse anonimato, sem retorno, de quem nunca recebeu um nome? E então, para horrorizar os defensores desse conceito esteticamente indefinível chamado “bom gosto”, o verbo “feder”. Mas que fará esse “agregado infeliz de sangue e cal” se não isso? Se há aí algo de mau gosto, é a própria vida, e extrair disso a grande obra arte é a única superação que ela nos permite. Finalmente, no último terceto, depois do sono augurado a esse “feto esquecido” (e que dor nesse profético “esquecido”, como se bem soubesse o poeta que perdas muito maiores também implacavelmente o serão), o insuperável 13º verso: “Panteisticamente dissolvido”, composto de apenas duas palavras, que, com seu comprimento excessivo, reproduzem sonoramente a idéia que carregam. E por fim, verso que já mencionamos: “Na noumenalidade do NÃO SER!”. Nem todos os leitores, infelizmente, terão a possibilidade de apreender esse verso, que Medeiros e Albuquerque julgou um disparate filosófico, em toda a sua profundidade de conceito e sobretudo de emoção.
Essa qualidade de adequação vocabular, característica da grande poesia em todos os tempos, percorre a totalidade da obra madura do poeta de “O lamento das coisas”. Vejamos, por exemplo, nesta poesia citada este verso: “A sucessividade dos segundos”. Há verso mais “sucessivo” do que esse, com a sua infindável cadeia de sibilantes? “Ouço, em sons subterrâneos, do orbe oriundos”. Haverá verso mais “fundo” do que esse? Em tudo, nesses momentos de perfeita realização, a marca desse fenômeno da genialidade, específico do mundo da arte, por ser não um grau superior de uma qualidade intelectual qualquer, mas um estado absolutamente pessoal, involuntário, irrepetível, intransferível e inadquirível de colaboração do inconsciente com o consciente, um milagre que se confunde com um homem e não se repete, chame-se ele Gil Vicente, Camões, Gonçalves Dias, Castro Alves, Cesário Verde, Cruz e Sousa, Pessanha, Antônio Nobre, Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos Pessoa, Sá-Carneiro, Manuel Bandeira, Cecília, Drummond, etc. Daí a importância secundária, humanamente falando, das correntes genealógicas e fecundantes na historiografia de uma literatura.
Quanto às influências dessas correntes, recebidas pelo poeta na sua formação definitiva, e que ficaram visíveis através de sua obra, parecem-nos afastados os autores de outras línguas, visto não estarmos tratando nem de temática nem da genealogia da mesma, da qual falamos acima, mas de uma concreta presença na sua maneira característica.
Nem Rollinat, do qual já o aproximaram não poucas vezes, nem Poe ou os que o seguiram merecem, exclusivamente por estarem na aludida família de sensibilidade, ser citados nesse caso. A mesma coisa não ocorre com Cruz e Sousa e com Cesário Verde. A influência do poeta dos Broquéis, sobretudo em seus sonetos derradeiros, sobre o modo de estruturá-los que encontramos em Augusto dos Anjos, especialmente na primeira fase, é inegável, parecendo-nos que na origem de ambos há algo de Antero de Quental, de resto o iniciador da retomada pós-arcádica do soneto como grande forma na literatura de nossa língua.
Vejamos, por exemplo, a construção desses dois famosos sonetos, o sublime “Sorriso interior” de Cruz e Sousa, seu último poema, escrito três dias antes da morte, e o “Eterna mágoa” de Augusto dos Anjos, com um título que lembra muito de perto os do Poeta Negro:
SORRISO INTERIOR
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem mágoas e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila,
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio.
Agora o soneto do Eu:
ETERNA MÁGOA
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem que é triste,
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à mágoa a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
Como podemos ver, a mesma estrutura baseada em um desenvolvimento conceitual que atravessa todo o corpo do soneto, até resolver-se no último verso, o mesmo andamento severo, classicamente solene, apesar da diferença essencial entre o pensamento luminoso do primeiro e a conclusão sombria do segundo.
Mais decisiva, porém, por agir não sobre uma fase de uma forma fixa, mas exatamente sobre a quadra de decassílabos que se tornou o instrumento por excelência da expressão do poeta, nos parece ser a quadra de decassílabos de Cesário Verde, sem esquecer a sua incorporação de um léxico cotidiano, material e prosaico, sendo inclusive o vocabulário científico também encontrado no poeta português. Cronologicamente, no caso do nosso autor, o contato com Cesário Verde deve ter acontecido a partir da segunda edição do Livro, a de 1901, visto a primeira, de 1887 e com duzentos exemplares, ter sido muito pouco divulgada. É provável, no entanto, que algo de sua poesia tenha chegado ao Brasil antes da edição popularizadora (o que é fato a ser estudado), como podemos rastrear em poetas como B. Lopes, pois é difícil conceber a existência de um poema como “Inverno”, incluído no Brasões, de 1895, sem a leitura da obra de Cesário Verde. A seleção, dentre os versos do poeta lisboeta, de algumas de suas estrofes mais cheias das características lexicais que mencionamos, mas sobretudo mais sonoramente aproximadas da maneira de Augusto dos Anjos, causará a qualquer leitor experimentado do poeta do Eu uma impressão de evidente familiaridade, às vezes mesmo de quase identidade sonora. Vejamos alguns exemplos, entre muito possíveis:
Era a desolação que inda nos mina
(Porque o fastio é bem pior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que o consome,
E a minha mãe cabelos de platina.
Era a clorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitação em festa,
Reverberando a luz meridional.
................................................................
“Moléstia negra” nem “charbon” não era,
Como um archote incendiando as parras!
Tão pouco as bastas e invisíveis garras,
De enorme legião do filoxera!
.................................................................
Nos vinhatórios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os paralelogramos das adegas,
Que têm lá dentro as dornas e o lagar!
...............................................................
A impressão doutros tempos, sempre viva,
Dá estremeções no meu passado morto,
E ainda viajo, muita vez, absorto,
Pelas várzeas da minha retentiva.
Então recordo a paz familiar,
Todo um painel pacífico de enganos!
E a distância fatal de uns poucos anos
É uma lente convexa, de aumentar.
(“Nós”, Livro de Cesário Verde)
Como vemos, até o uso característico dos vocábulos esdrúxulos, como no segundo verso da última quadra, ou o uso de expressões das ciências naturais, como na terceira, sem contar as metáforas audaciosas e sobretudo a cadência do verso, mostram a grande proximidade entre o extraordinário poeta português e o admirável paraibano, parecendo-nos, apesar da inegável influência do primeiro sobre o segundo, um caso de sensibilidades afins, fraternalmente próximas, onde a primazia cronológica é mais um acidente ocasional do que uma ordem implacável, e onde talvez uma simples inversão de prioridade provocasse uma inversão de influência, ao menos se houvesse canais de comunicação eficazes para tanto.
Da mesma maneira, é justamente com Cesário Verde em Portugal e com Augusto dos Anjos no Brasil que a incorporação de um vocabulário violentamente apoético pelos cânones clássicos, de um léxico da realidade concreta, reles, diária, mesquinha, abre as portas para uma invasão da are no campo da realidade em seu sentido mais concreto. Se há algo de realmente específico, original, na poesia mundial do último século e meio, é essa conquista do território do banal, essa capacidade nova e extraordinária de extrair o sublime das áreas mais reles da realidade. Como disse Baudelaire: “J’ai pétri de la boue et j’en ai fait de l’or.” E isso fizeram na nossa língua os poetas em questão. Muito mais importante que o vocabulário científico, muito mais característico e decisivo para a história de nossa poesia, é o uso feito pelo poeta paraibano dessas palavras, reflexos da realidade em si, que dificilmente entraríamos em um poema de Alberto de Oliveira, de Martim Fontes ou de Olavo Bilac: fogão, bacia, ferrolho, escarradeira, cuspo, querosene, colher, lixo, mulambo, entre muitíssimas outras. Sem ser de maneira nenhuma um realista, consciente de que a simples reprodução do real não alcança o âmago essencial da realidade sem se valer para isso dos artifícios da arte, o poeta do Eu lança mão deles, tal como seu colega lisboeta, para atingir esse manancial virgem e inesgotável de criação estética e compreensão humana, podendo fazer sua a declaração quase goethiana de Serguei Eisenstein: “Não sou um realista; afasto-me do realismo para atingir a realidade.” Ou o exemplo pictórico extremo e decisivo de um Van Gogh. Dessa maneira, acrescentando ao tom e ao repertório elevado da arte clássica a liberdade maneirista e barroca, e alcançando uma vastidão temática nunca imaginada, a arte contemporânea penetrou nos mais defendidos baluartes do real, nas suas manifestações internas ou externas, seja através do ilimitado aprofundamento essencial de um Rilke, de um Valéry ou de um Pessoa, seja através da visão ineditamente totalizadora da realidade material de um Cesário Verde ou do extraordinário artista de que tratamos.
O que, a despeito de tudo isso, de toda essa intrincada e secundária rede de afinidades e origens, é incomunicável e primordial em Augusto dos Anjos, e que encerra a sua maior grandeza, é a sua pessoalíssima e desesperada empatia com a limitação universal, ou seja, a sua quase mística ânsia do absoluto, que produziu para a poesia brasileira a manifestação mais pungentemente trágica de toda a sua história.
Alexei Bueno