REDES

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O colonialismo digital e o convite à impotência- OUTRAS PALAVRAS

 





OUTRAS PALAVRAS NOS BRINDA UM CAPÍTULO DO LIVRO ACIMA.COM UMA CHAMADA

ATIVA SOBRE O COLONIALISMO ALGORÍTIMICO,DESFRUTEM....P VASCONCELOS

https://bit.ly/3HYxIAm

Num mundo em que o controle e manipulação de dados serão cada vez mais decisivos, Brasil cede às ofertas da Big Data e compromete seu futuro tecnológico. Novo livro lança alerta e sugere, como alternativa, a soberania algorítmica


OUTRASPALAVRAS

Publicado 25/11/2021 às 20:10 - Atualizado 25/11/2021 às 20:17    

Este texto é um dos capítulos de Colonialismo de dados: como opera a trincheira algorítmica na guerra neoliberal, organizado por João Francisco Cassino, Joyce Souza e Sérgio Amadeu da Silveira, livro recém-lançado pela Editora Autonomia Literária, parceira editorial de Outras Palavras. Quem apoia o jornalismo de profundidade e sem catracas de Outras Palavras tem 25% de desconto. Saiba como

Um importante anúncio do Poder Judiciário paulista apareceu no noticiário especializado, em fevereiro de 2019. Indicava que os processos judiciais do estado de São Paulo, o mais populoso e mais rico do Brasil, seriam entregues à chamada nuvem da Microsoft. O objetivo seria hospedar na empresa estadunidense uma plataforma digital que agregaria serviços de inteligência artificial e permitiria o registro, o arquivamento e a tramitação de todos os processos do maior tribunal do país. A matéria de um relevante jornal econômico brasileiro destacava a importância dos aspectos positivos do armazenamento em nuvem. O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou ao jornal: “será o primeiro [Tribunal] do país a tomar esse caminho – e um dos poucos no mundo”. (18)

Sites e especialistas destacavam a ação inovadora do Judiciário paulista e o valor do projeto da chamada Plataforma de Justiça Digital, que seria de 1,32 bilhão de reais,(19) com dispensa de licitação. (20) A comunicação social do tribunal divulgou, no dia 20 de fevereiro de 2019, que “ao final de cinco anos, o custo fixo anual do TJ com o sistema judicial terá redução de 40%, além de eliminar a necessidade de alto investimento na renovação de Data Center”.(21) A dimensão do contrato e suas implicações eram gigantescas, o que levou o presidente mundial da Microsoft, Satya Nadella, a vir ao Brasil dias antes da assinatura do contrato para se reunir com o presidente do tribunal paulista. Segundo a assessoria de comunicação do Judiciário, o executivo da corporação fundada por Bill Gates afirmou que “a tecnologia é o meio, não é atividade fim. O fim é o que se faz com a tecnologia. E o sonho do TJSP de transformar essa plataforma de serviços aos cidadãos é revolucionário”. Nadella se comprometeu a colocar as melhores cabeças da Microsoft para atuar no projeto do tribunal.

Nenhum veículo, colunista, parlamentar questionou a entrega dos dados dos processos civis, criminais, empresariais, de crianças e adolescentes, de contenciosos judiciais de milhões de pessoas e milhares de empresas para a nuvem de uma das maiores plataformas estadunidenses, com interesses econômicos, financeiros, comerciais e geopolíticos no Brasil. Essa era uma não-questão. Também não foi perguntado se esses recursos, caso fossem empregados em empresas e centros de pesquisa brasileiros, não gerariam ganhos importantes não somente para a sociedade, para o desenvolvimento de inteligência local, como também para o próprio tribunal.

Apesar da inexistência de questionamentos na opinião pública, o Conselho Nacional de Justiça (22) proibiu a execução do contrato com o argumento principal de que o acordo com a Microsoft iria na “contramão de privilegiar um sistema único para tramitação processual”,(23) uma vez que os tribunais brasileiros estariam buscando um desenvolvimento integrado para a digitalização e tramitação de processos. Curiosamente, o destaque não foi a proteção de dados sensíveis da população, nem mesmo a necessidade de avançar a inteligência nacional na área de inteligência artificial.

Este capítulo começou pelo relato desse caso inconcluso por ser exemplar na caracterização de uma série de não-questões para boa parte dos pesquisadores acadêmicos, formadores de opinião, influencers, lideranças políticas e movimentos sociais que envolvem a colonialidade ampliada pelas tecnologias. Aqui pretendo trazer a hipótese de que essas não-questões ou críticas ofuscadas escondem um epistemicídio, tal qual Sueli Carneiro, inspirada em Boaventura de Sousa Santos, tratou dos mecanismos constituídos para negar a existência do racismo no país e as reflexões e saberes dos negros. O epistemicídio não recai somente à racialidade, também integra o regime de verdade da colonialidade que está justaposto com práticas acríticas e normalizadas pelas infraestruturas de submissão que se baseiam na alienação técnica e são fundamentais para o ordenamento neoliberal em uma sociedade fortemente dataficada.

Quais seriam as questões importantes encobertas e ofuscadas, tornadas não-questões, pela colonialidade em um cenário de capitalismo informacional, organizado em uma economia de dados neoliberal? Primeiro, a dúvida sobre a crença de que as empresas e plataformas digitais são neutras e que não interferem em nosso cotidiano, exceto para nos servir. Segundo, a interrogação sobre a inexistência de consequências negativas locais e nacionais na utilização das estruturas tecnológicas das plataformas, uma vez que elas respeitariam os contratos. Terceiro, a avaliação de que as implicações sobre a coleta massiva de dados nos países centrais da plataformização tecnológica possuem os mesmos efeitos econômicos, políticos e socialmente moduladores que nos países periféricos. Quarto, a indagação sobre se seria possível apostar no avanço de uma inteligência computacional local, na soberania algorítmica e no conhecimento tecnológico como um bem comum livre.

Colonialidade e neoliberalismo

Para muitos pensadores críticos, o colonialismo histórico acabou, mas a colonialidade se mantém e pode ser empiricamente mapeada e constatada. O sociólogo peruano Anibal Quijano definiu a colonialidade como um dos principais elementos do padrão mundial de poder capitalista. A colonialidade foi construída sobre classificações raciais e étnicas das populações e está associada à expansão da modernidade e de sua racionalidade, a partir da Europa. Ela se mantém por meios materiais, por mentalidades e por relações de subordinação, sujeição e de inferiorização de modos de vida, de saberes e de conhecimentos. (24)

A colonialidade se apresenta como a imposição de modelos de pensamento, de agenciamentos, de comportamentos que negam ou desvalorizam epistemes, modos de aprender e conhecer das comunidades e das sociedades não ricas, também expulsa do que deve ser considerado normal à ideia de autonomia, de busca por caminhos diferentes, de toda tentativa daqueles que fogem aos interesses da economia e das suas principais corporações. Como aponta Paola Ricaurte, (25) em uma sociedade baseada em dados, a colonialidade de poder é realizada e amplificada também por meio de dados e das suas tecnologias de tratamento.

A partir dessa perspectiva, é possível notar que o avanço do ordenamento neoliberal ampliou e aprofundou a colonialidade. Sem dúvida, existem diversas definições de neoliberalismo que extrapolam sua dimensão tão somente econômica ou sua categorização como mera atualização do velho liberalismo. O neoliberalismo é uma conduta e um modo de pensar que coloca o mercado acima de todas as demais dimensões da vida. Mais do que isso, a doutrina neoliberal se empenha em definir as empresas como elemento crucial da existência e a concorrência como o objetivo maior de qualquer agregado humano.

Michel Foucault, ao analisar a constituição do neoliberalismo, com base nas vertentes alemã (ordoliberal) e estadunidense, em O nascimento da biopolítica, percebeu sua implicação na disciplina das condutas e em uma visão de mundo, indo além da reformatação dos governos para atuar em função das empresas. Laval e Dardot, inspirados em Foucault, detectaram que o neoliberalismo é a forma atual de nossa existência e que se impõe como o ordenamento do capitalismo contemporâneo. Alicerçados no marxismo, David Harvey, Gérard Duménil e Dominique Lévy consideraram a neoliberalização como a dinâmica geral do capital que opera em benefício das camadas mais altas de renda, resultante do compromisso entre as classes capitalistas e a camada superior da classe gerencial, sob a hegemonia financeira. Wendy Brown observou que o neoliberalismo coloca a legitimidade do Estado subordinada à capacidade de servir a racionalidade econômica, solapando o vínculo entre capitalismo e democracia, subordinando tudo, principalmente a lógica do Estado, às empresas e à sua rentabilidade. Pesquisadores de inspirações tanto marxista quanto foucaultiana identificam que o neoliberal desloca a empresa para o centro de gravidade da existência e faz do Estado seu maior serviçal. Nesse sentido, as relações contratuais entre capital e trabalho se tornam relações entre empresas de variados tamanhos, inclusive, empresas de um único funcionário, que é o seu próprio dono.

A dinâmica neoliberal reforça a colonialidade. Primeiro, a boa cartilha neoliberal manda que as empresas privadas assumam todas as atividades econômicas. Assim, cabe ao Estado assegurar que essas empresas assumam a criação, execução e manutenção do máximo de ações possíveis. Segundo, o ethos da concorrência manda apostar no menor preço com a melhor qualidade – esta nem sempre exigida. Terceiro, o desenvolvimento virá da escolha e do consumo dos melhores produtos e serviços, independentemente de outros valores ou princípios, como local de produção e benefícios sociais. Assim, para o neoliberal não seria sustentável a opção de criar e manter serviços executados pelo Estado, nem gastar recursos que deveriam ser investidos em empresas privadas, muito menos tentar soluções custosas de desenvolver localmente o que pode ser obtido globalmente. O neoliberalismo utiliza com anabolizantes a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo.

Assim, países periféricos devem se empenhar em comprar os melhores produtos e serviços pelo menor preço. O uso é subentendido como o passaporte para o avanço econômico. A invenção, o domínio da técnica, deve se concentrar nas grandes empresas que possuem capital para essa atividade. Seria demasiadamente irracional e custoso criar outros produtos e soluções próprias, pois isso iria se confrontar com a ideia de obter o melhor pelo mais econômico. Quase todo documento de uso de tecnologia digital, da nomeada transformação digital dos Estados, enaltece a redução de custos. Essa lógica reforça a colonialidade, uma vez que a margem de manobra e as opções para encontrar outras saídas longe da compra de produtos e serviços das grandes corporações dos países ricos seriam muito pequenas ou inexistentes.

No cenário das tecnologias da informação e no capitalismo digital, Dan Schiller, já no fim do século XX, havia detectado que, embaladas pelo neoliberalismo, as infraestruturas do ciberespaço, os sistemas de telecomunicações, foram completamente orientadas para o mercado e o fortalecimento de corporações transnacionais. Schiller via, entre outras consequências, que a expansão da internet nos levaria ao aprofundamento do consumismo em escala transnacional e ao domínio até das estruturas e processos educacionais dos países pobres. O que ocorreu no início de 2020 com o Sistema de Seleção Unificada, SiSU, do Ministério da Educação (MEC), é um exemplo cabal do reforço mútuo da relação entre o neoliberalismo e a colonialidade, bem como das tendências apontadas por Schiller.

O SiSU é um sistema informatizado, criado em 2010, pelo qual as instituições públicas de ensino superior ofertam suas vagas conforme as notas obtidas pelas pessoas que participaram do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A direção do MEC decidiu entregar os dados do SiSU para serem processados na nuvem da Microsoft, chamada Azure. Ou seja, hospedou os dados do desempenho escolar de milhões de estudantes brasileiros para serem tratados na plataforma estadunidense.(26) O principal argumento foi o do alto custo em manter esses dados em um data center do próprio. Além disso, segundo a Rede Nacional de Pesquisa, a solução da Microsoft atendeu 1,8 milhão de estudantes, que realizaram 3,5 milhões de inscrições, com 210 mil usuários conectados ao mesmo tempo, perfazendo 7 mil inscrições por minuto e a média de 1,5 milhão de acessos diários. Outro importante argumento é de que, além de aumentar a segurança do processo, espera-se uma economia de aproximadamente 22 milhões de reais em cinco anos de projeto.

Dados dos estudantes que cursaram o ensino médio, como a renda familiar bruta mensal de cada um, os valores recebidos em diversos programas sociais, a nota no Enem, as médias populacionais relacionadas à cor declarada e a deficiências, entre outras informações sensíveis, foram entregues à plataforma Microsoft Azure. Não consta dos debates públicos ou entre gestores do governo a constatação de que a corporação estadunidense de tecnologia possui interesses econômicos no país e na própria área educacional brasileira, nem que, provavelmente, hospedou os dados em servidores localizados nos Estados Unidos, em sua denominada nuvem pública. O acesso e a manipulação desses dados não aparecem como problema. As notas das autoridades não destacam nem mesmo a importância das normas contratuais específicas de proteção de dados de adolescentes.

No contexto da governamentalidade neoliberal, a construção de uma solução infraestrutural para a hospedagem de dados e a implementação de frameworks de inteligência artificial do próprio MEC e das universidades brasileiras não é considerada razoável. A economia imediata, a entrega de atividades antes executadas pelo Estado a empresas privadas, a crença em contratos e em um padrão moral isento de interesses geoestratégicos e negociais conformam um regime de verdade da gestão pública neoliberal. Assim, os primados da boa conduta neoliberal inundam as cartilhas de boas práticas da gestão pública e reforçam a dependência das práticas econômicas das grandes plataformas, das big techs. Os princípios neoliberais reforçam a colonialidade, esse padrão de poder mundial que surgiu há mais de quinhentos anos.

A colonialidade trabalha preferencialmente o tempo imediato. As soluções sempre devem estar prontas, a dromoaptidão (27), a velocidade acelerada das soluções ofertadas pelas plataformas é enaltecida. As corporações sempre estão prontas a nos servir, serão mais rápidas do que construir um caminho de aprendizado e de fortalecimento das inteligências locais. No contexto da colonialidade, o colonizado, a inteligência coletiva local, nunca está pronto, apto, capacitado para enfrentar um problema sem recorrer a uma corporação da matriz. O neoliberalismo se aconchega na colonialidade.

Continue lendo em: https://bit.ly/3HYxIAm

Nenhum comentário: