REDES

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O ENCORE PUNK-ROCK DO MINIMALISMO


24 MAI - 26 AGO 2007


O ENCORE PUNK-ROCK DO MINIMALISMO

Partindo da definição paradoxal da Pós-Modernidade proposta por Lyotard, para quem “uma obra só pode tornar-se moderna se for, antes de mais, pós-moderna”, Thierry de Duve identifica e caracteriza as duas tendências fundamentais da criação e da crítica contemporâneas, polarizadas entre duas concepções da história – uma de inspiração hegeliana, a outra de orientação nietzschiana –, entre duas conceituações da estética – uma marxista, a outra barroca – e entre duas inscrições políticas – uma centrada nas determinações ideológicas (realista), a outra partidária da total autonomia da arte (idealista). A “arqueologia da modernidade” de Thierry de Duve desenterra assim os argumentos da ‹i›querela‹/i› que, desde as primeiras aflorações do modernismo (e das duas concepções da modernidade e da pós-modernidade) se tem mantido à superfície da criação e da historiografia contemporâneas. De um lado, as correntes pós-Habermas, que defendendo a proporcionalidade entre a função epistemológica e a probidade ética, vêem na arte “uma promessa de emancipação fiel ao ideal das Luzes” e “desesperam de ver essa promessa traída a cada dia”. Estes seriam, como acrescenta de Duve, os «protestantes», para os quais, sendo a arte um conceito crítico (significativo), todo o deleite estético determina uma decadência hedonista. De outro lado, as disposições pós-Baudrillard, que sustentando que a arte não é uma questão de verdade, mas se inscreve numa circularidade de simulacros e numa economia pulsional (fetichista), alimentam uma “paixão fria pelo objecto”. Estes seriam, por contraste, os «católicos», para os quais “a estética é tudo e a arte tudo menos um conceito”. É nesta oposição, não de antigos e modernos, mas entre uma reflexão e uma acção radicadas na história e um pensamento que se constrói fora do tempo, a partir de um ponto de vista que transcende a história, que Thierry de Duve reconhece dois paliativos e duas interpretações do paradoxo lyotardiano. Para os primeiros, o paradoxo de Lyotard reinscreve sem cessar o pós-moderno no moderno: a história da modernidade prossegue até hoje, mas como “repetição infeliz, utopia sem promessa, radicalidade gratuita”. Para os segundos, o paradoxo de Lyotard é entendido no sentido inverso e traduz uma reciclagem permanente do moderno no pós-moderno: a história da modernidade acabou, ou melhor, “tanto a história como a modernidade acabaram uma vez que nos encontramos na pós-história”.

É neste contexto, de acordo com estes parâmetros, que têm de ser avaliado o trabalho de Steven Parrino, na releitura que este propõe das vanguardas (tanto as do início como as de meados do século que assim as nomeou), conduzida através da já clássica transgressão das fronteiras disciplinares, da prática da apropriação e da citação e da junção entre a cultura pop e o modernismo mais erudito, mas também a “radicalidade” com que a crítica tem, unanimemente, classificado as suas propostas. Atendendo à urgência de desmontar a ideologia da vanguarda – no tom hegeliano com que esta conduziu a arte a um devir histórico, através da alienação que acompanha o progresso a caminho do projecto da sua destruição e desaparecimento –, é o próprio autor que reconhece que “a radicalidade vem do contexto e não necessariamente da forma” porque “as formas são radicais na memória, perpetuando o que foi radical antes por extensão da sua história”: é que “a vanguarda deixa um turbilhão e, movida por uma força maneirista, ela prossegue o seu avanço”. Mesmo na fuga, acrescenta Parrino, “olhamos para trás por cima do ombro e conduzimos uma aproximação à arte mais por intuição do que por estratégia” e “vista sob este ângulo, a arte é mais culto do que cultura”.

Um ano e meio depois da morte de Steven Parrino, significativamente vitimado por um acidente ao volante da sua Harley Davidson – mota cuja coloração standard preta e metalizada, usada pelo autor tanto em referencia à cultura Hot Rod, como enquanto elo de ligação da estética Hell’s Angels e da arte minimal, se tornaria no seu “emblema” de culto, signo arte-vida (ou se preferirmos, arte-morte, passe o humor negro que certamente não desagradaria a Parrino) – o Palais de Tokyo propõe um olhar perspectivado sobre o trabalho desenvolvido ao longo de quase 30 anos por este artista americano. Concebida como um tríptico, a exposição, “La Marque Noire / Steven Parrino Retrospective, Prospective” é composta por uma selecção de trabalhos realizados pelo autor entre 1981 e 2004; por “Before (Plus ou Moins)”, mostra composta por obras históricas das décadas de 1960/70, que constituem algumas das peças-chave na formação do universo estético de Parrino; e por “Bastard Creature”, releitura de duas exposições comissariadas por Parrino em 1999 e 2003.

Tendo dinamizado na cena nova-iorquina do início dos anos 80 um amplo regime de colaborações, cobrindo um campo diversificado que vai do minimalismo à tatuagem, passando pela música, pelo cinema experimental, pela banda desenhada e pelo design industrial, a prática artística de Steven Parrino desenvolve-se sobretudo na articulação de duas frentes, ensaiando estratégias de aproximação entre a “alta cultura” e a “cultura popular”. Por um lado, apropria-se das imagens produzidas pela contra-cultura americana do pós-guerra, reflectindo sobre a reemergência das sub-culturas “biker”, “no-wave” e “punk”. Por outro, usa essas imagens conotadas com uma certa ficção apocalíptica e um certo ideário satânico-porno-queer-motard em diálogo estreito com a vanguarda americana da segunda metade do século XX – particularmente com a obra de artistas como Andy Warhol, Vito Acconci, Robert Smithson, Frank Stella ou Donald Judd –, procurando explorar a pintura numa nova direcção “realista”, quando a morte da pintura parecia já um facto consumado. Deste modo, Steven Parrino (designado por alguns como o Dr. Frankenstein da pintura), vai somando transgressões de circunstância, mais ou menos folclóricas, mais ou menos pertinentes, que desembocam, simultaneamente, numa necrofilia pictórica, numa crença tardia na eficácia disruptiva da vanguarda e numa ideia de realismo coincidente, nos seus princípios e fins, com a objectividade minimalista. A cartilha de Steven Parrino fica assim a meio caminho entre o “protestantismo” e o “catolicismo”, entre o impulso destruidor e iconoclasta (porventura anarquista) e a estetização das ruínas (certamente romântica).

Os termos “radicalidade” e “realismo” definem-se em Parrino um em função do outro, como um pas de deux: do mesmo modo que a radicalidade é realista (no sentido físico do minimalismo), a acção do realismo deverá ser radical (no sentido metafísico da figuração). Redefinido depois de Courbet, o realismo, refere Parrino, “não trata mais de representar a realidade de um momento, mas de dar corpo a um objecto, num mundo real e num tempo real”. Se o projecto modernista consistiu na definição da arte pela sua redução progressiva às suas condições necessárias e suficientes, para que uma obra tenha sentido é necessário que resulte de uma posição justa quanto à sua materialidade, quanto à ideologia na qual é concebida e quanto à situação em que intervém. A reavaliação crítica da vanguarda e das suas potencialidades deverá, como o propõe Thierry de Duve, incidir assim numa tripla averiguação: do lado do significado, a auto-exaltação do sentido da arte deverá passar pela derisão; ao nível do significante, a auto-instituição das suas convenções formais deverá passar pela desmontagem; e, no que se refere ao referente, a auto-referência dos seus propósitos deverá passar pela traição. Manifestando uma “crença na estética” e a convicção de que a noção de vanguarda pode ainda ser operante no contexto contemporâneo, Steven Parrino furta-se no entanto a uma problematização aprofundada da questão, refugiando-se em expedientes vulgarmente associados ao pós-modernismo (entendido no seu sentido mais corrente): a obra é assim concebida como uma superfície de projecção e de associação livre.

A par dos trabalhos figurativos, constituídos essencialmente por desenho e colagem, explícitos quanto ao seu universo de referência (o já indicado bestiário fantástico de heróis e vilões da contra-cultura americana do pós-guerra), no que toca à arte erudita, as estratégias de apropriação, citação e comentário desenvolvidas por Parrino são variadas. A pesquisa pictórica de Parrino incide tanto numa radicalidade cromática (as telas são, na sua maioria, superfícies lisas, negras ou metalizadas) como morfológica (o autor desenvolve uma “obstrução formal” que desemboca na indiferenciação do espaço real e do espaço de representação, na exploração da tridimensionalidade da pintura, na redução à sua elementaridade mínima daquilo que pode ser identificado como a “violência” expressiva do expressionismo abstracto, agora convertida em acção destruidora. Entre alusões ao “Quadrado negro” de Malevich, ao vocabulário artístico de Daniel Buren, ao “conceito espacial” e incisuras sobre telas monocromáticas de Lucio Fontana, Parrino prossegue uma pesquisa estética na senda destes e doutros autores, prolongando assim o questionamento sobre os limites físicos do suporte pictórico (questão formulada de modo particular através do reenquadramento e plissagem das telas em grades convencionais, ocultando desse modo parte da superfície pintada e mostrando em contrapartida zonas por intervencionar), sobre a representação como obliteração, a série, a repetição, o original, a cópia, etc. O denominador comum de todas os trabalhos pode encontrar-se – como é sublimado tanto pelas obras em suporte vídeo como pelas experiências sonoras/musicais – na sobreposição de um ruído opacificante à pureza formal do minimalismo. Produzindo um distanciamento plástico (e porventura histórico) face a essas experiências, este é seguramente o aspecto mais pertinente da obra de Steven Parrino: o que confere alguma modernidade ao que de outro modo não passaria de uma frivolidade pós-moderna, se nos é permitido inverter os termos de Lyotard.

Tendo em conta a linha de programação do Palais de Tokyo, depois de “Cinq Milliards d’Années” e de “M Nouvelles du monde renversé”, exposições consagradas a testar respectivamente “a elasticidade e a oscilação da obra de arte”, “La Marque Noir” pretende agora “experimentar a sua resistência”. Se é certo que estes propósitos traduzem bem aquelas que continuam a ser as preocupações de alguma arte contemporânea, seja nomeadamente naquilo que continua a haver de moderno no decreto pós-moderno, seja na mesmidade autofágica da pescadinha-de-rabo-na-boca que continua a ser o binómio arte / antiarte, cumpre questionar a que práticas responde o epíteto da “radicalidade”. É que posicionando-se algures num ponto supra-determinado (na comodidade da n + 1.ª dimensão que caracteriza o cinismo teórico), tanto a “arqueologia da modernidade” (que para analisar o fenómeno artístico contemporâneo, propõe, no caso de Thierry de Duve, o ponto de vista de um “etnólogo marciano”), como a falsa audácia e abertura das instituições aparentemente mais “progressistas” (às quais competiria uma reflexão sobre o fenómeno artístico em “tempo real”) não respondem àquela que é a condição primeira e sine qua non da radicalidade: o enraizamento local e epocal, a radicação da acção não numa qualquer ideia de “globalização”, mas no aqui e no agora.


António Preto
http://artecapital.net/criticas.php?critica=125

Nenhum comentário: