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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

EM SE PLANTANDO, TUDO DAVA...(capturas do Face)


Ao ler hoje alguns posts, no facebook, deparo-me com um, do amigo e escritor brasileiro, radicado em Berlim, Antonio Brasileiro, surpreende-me,  e não , seu longo texto e que vale a pena ser lido e, mais, a sua coluna na Cultura e Mercado, (http://bit.ly/2wO8qmO),como sempre, aposto.Antonio não se mete atoa na escrita, não é? LEIAM Paulo Vasconcelos



Antonio  Salvador -Foto: S. Felber.

EM SE PLANTANDO, TUDO DAVA
Basta um contraponto hoje em dia para ser acusado do que até Deus duvida. Como Deus já não duvida de coisa alguma, fui acusado de quem duvida de Deus... Em outras palavras, fui chamado de comunista.
A causa de tudo foi um artigo a respeito da condenação do ex-Presidente Lula, intitulado “Staat im Sumpf” (Estado no lodaçal), publicado pela revista alemã Der Spiegel, o qual, inopinadamente, fiz circular nas redes e foi recebido com indescritível paixão. O jornalista alemão, autor do artigo, expressava a leitura dos fatos tais quais percebidos deste lado do mundo, isto é, a condenação do ex-Presidente – como aliás tudo o que viceja no pós-verdadeiro Brasil – teria fundo essencialmente político, seria uma tentativa de inviabilizar sua candidatura em 2018. Foi o suficiente.
Que, do pé para a mão, eu virasse comunista, até aí, estamos às ordens. A grande surpresa é que, numa gradação fantástica, a própria Der Spiegel – pelo fato de ter publicado a matéria –, fosse acusada de comunismo.
Feito um cálculo de cabeça, somados todos os quadrantes do mundo ocidental, o triângulo Rio/São Paulo/Curitiba é o único onde ainda se fala em comunismo num tom de ameaça premente. Além desse fenômeno, há outros que ultrapassam as raias da anomalia e descambam direitinho para o sobrenatural. É a sina dos triângulos enigmáticos... O das Bermudas, por exemplo, fica no chinelo; a ciência, se já não encontrou para ele todas as respostas, encontrará um dia. No caso do Brasil, a certeza é que as charadas tendem a se multiplicar e a rodopiar, tragadas afinal pelo buraco negro de todas as capacidades cognitivas.
Como a Der Spiegel, fundada por oficiais do exército britânico durante a ocupação dos Aliados em solo alemão pós-Segunda Guerra, poderia ter inclinação comunista, ninguém me explicou. Que tivesse vários de seus jornalistas banidos pela DDR (antiga Alemanha Socialista) e escritórios fechados, durante a década de 70, nada disso vem ao caso. Que a própria Der Spiegel, desde sua fundação, alertasse contra os perigos do comunismo, inclusive no Brasil, para que mexer nisso?
Ora, que graça teria a crônica sem uma notinha de época?
Pulga de Flohmarkt, encontrei os dez primeiros exemplares da revista e comprei-os de olhos abertos e nariz tapado. Não sei se foram os espirros ou outra coisa, meus olhos ficaram logo marejados ao me deparar, já no terceiro volume, com a primeira notícia da Der Spiegel sobre o Brasil, publicada em 18 de janeiro de 1947. E qual era o tema? Qual poderia ser? Não é preciso perguntar uma terceira vez. O tema era crise: “Kaffeeland in der Krise“ (País do café em crise).
O “café”, no título, seria apenas uma maneira de apresentar ao público alemão esse país, então desconhecido, chamado Brasil, “18 vezes maior do que a Alemanha de 1937”, cujas eleições iminentes despertavam “especial tensão” entre observadores americanos. O medo reinante era o “grande progresso” que os partidos comunistas vinham fazendo “em toda a América Central e do Sul”.
Embora, até aquele momento, “em nenhum país” tivessem tomado “o poder formalmente”, afirma a revista, os partidos comunistas na América do Sul “representam aos EUA uma ameaça maior do que os partidos nacional-socialistas ou fascistas”.
Na disputa em curso pelo poder, a revista cita a conservadora UDN e os Integralistas, “esse partido fascista”, “ainda não totalmente organizado”.
As duas forças aparecem como opositoras à central figura de Getúlio Vargas que, embora tivesse sido destituído “há pouco mais de um ano”, é denominado como “um Poder” em si, o qual, acrescenta a revista, “dificilmente alguém no Brasil poderá negar”. Destaca-se o amplo apoio da população trabalhadora, conquistado por Vargas “por meio de suas leis sociais durante seu governo”, e que o “comportamento” de Getúlio “mostra que ele está se esforçando para aumentar sua influência” e para “ao menos desempenhar nos bastidores um papel determinante”, afinal “ele tem conexões em todos os lados”.
Não sei se me acompanham... mas será o espelho dos tempos?
O “tácito apoio” de Vargas a Prestes e ao Partido Comunista é sublinhado. E o desfecho do artigo ganha atmosfera amedrontadora: “Embora hoje a imprensa brasileira seja 95% anticomunista, embora as forças armadas e a Igreja sejam nitidamente anticomunistas, é de se admitir que os comunistas aumentarão consideravelmente seus votos nas eleições presidenciais”.
Fecha-se o círculo.
No país do café, o comunismo tornou-se o nó górdio desse círculo que nos faz pensar estarmos sempre diante da mesma velha notícia. É uma assombração histórica que nunca apareceu de fato, mas que todos dizem tê-la visto – e, justo onde, antes no Catete, hoje em Brasília!
Em 2017, “ainda não há uma imagem clara da situação política”, como já não havia em 1947, segundo a Der Spiegel. Mas algumas coisas mudaram. Além de tudo o mais que, no país do café, anda em baixa, a cafeicultura vive seus piores dias. Pela primeira vez, em mais de 300 anos de história de plantio, o governo interino em exercício viu-se na iminência de importar café. Baixou-se até uma portaria, houve barulho, gabinetes fervilhando e – como já é marca registrada – um passo para trás.
No último minuto foi suspensa a importação de 1 milhão de sacas. O motivo da reviravolta não tem a ver com um prognóstico positivo, mas sim com o medo da importação de pragas... Como se em qualquer parte pudesse haver pragas mais daninhas do que as já alocadas em solo nacional.

Berlim, segunda-feira, 28 de agosto de 2017.
* Texto escrito originalmente para a coluna "O Coice" do Cultura e Mercado.

sábado, 26 de agosto de 2017

REVOLTA DOS BÚZIOS, IDENTIDADE E PRESENÇA (capturas do Face)

Como sempre o Professor Florisvaldo Mattos aponta a história  para nos dizer melhor, assim ele nos conta dos 219 anos da Revolta dos Búzios, uma luta pela liberdade do Brasil, que esquecemos; para tanto é preciso redizer e redizer para que entendamos a nós, o Brasil de hoje.Paulo Vasconcelos

Florisvaldo Mattos UFBA

Participando hoje, pela manhã, de magnífica e consagradora sessão especial da Assembleia Legislativa, presidida pela deputada Fabíola Mansur, em memória da Revolta dos Búzios, pelo transcurso de seus 219 anos, um marco da luta pela igualdade e liberdade no Brasil-Colônia, convidado a compor a mesa, com políticos, professores e luminares do movimento negro da Bahia, levei para ler na tribuna o texto abaixo transcrito, ao final solicitado para figurar nos anais da Casa, como registro. 
Impressionaram o entusiasmo e a identidade do auditório para com o significado da iniciativa, expressados em cantos de hinos e fortes aplausos, especialmente para duas falas, a da professora Patricia Valim, especialista no assunto, e a de João Jorge Rodrigues, um ícone na luta pelo reconhecimento da importância do negro na sociedade brasileira.
Transcrevo abaixo o texto da palestra, agregando, como ilustração, a célebre pintura do francês Eugéne Delacroix, "A Liberdade Conduzindo o Povo" (1830), desde que o sumo das ideias e da pregação da conjuração baiana centrava-se na caudal de princípios que nortearam a Revolução Francesa, de 1789.



A COMUNICAÇÃO PÚBLCA 
NA REVOLTA DOS BÚZIOS

Florisvaldo Mattos
Senhoras e senhores, bom-dia.
Devo a minha presença nesta sessão especial à deputada Fabíola Mansur, que me agraciou com o gentil convite para dela participar, em razão de ter eu escrito um livro, por sinal publicado pela Assembleia Legislativa, em convênio com a Academia de Letras da Bahia, em 1998, por ocasião das comemorações dos 200 anos do movimento revolucionário, que se chamou Revolta dos Búzios, objeto dessa iniciativa merecedora de aplausos. 
Nesta obra, que recebeu o título de "A comunicação social na Revolução dos Alfaiates", deixando a parte essencialmente histórica da sublevação à competência dos historiadores, entre eles o professor Luiz Henrique Dias Tavares, seu mais destacado estudioso, preferi abordar, creio que pioneiramente, um ponto crucial que consistia em definir o papel da comunicação social na insurreição, optando pela designação mais repetida entre os estudiosos do fato histórico, hoje mais comumente chamado Revolta dos Búzios. 
Sucedeu que, na última década do século XVIII, um grupo de pessoas em diversas situações de classe, mas preponderantemente da mais baixa escala social, intentou promover um levante, que visava libertar o Brasil-Colônia do jugo português, empunhando múltiplas bandeiras, tais como independência da Capitania, implantação da república, abolição da escravatura, igualdade para todos, livre comércio com as nações do mundo, interrupção do vínculo com a Igreja do Vaticano, instituição do trabalho remunerado, melhoria do soldo militar e garantias para os plantadores de cana, fumo e mandioca, assim como para comerciantes.
No que se refere às ideias dos que estavam engajados no movimento de libertação, esse caldeirão efervescente pressupõe um vasto campo de procedimentos durante certo período, em que imperaram as relações de comunicação, para obtenção de consenso em torno dos propósitos da intentada conjuração. No entanto, desbaratada a revolta, o resultado de tão elevada aspiração ficou na história como exemplo máximo de sofrimento, crueldade e tragédia, recaindo as penas de enforcamento, seguido de esquartejamento, sobre quatro dos envolvidos, dois deles soldados (Luiz Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas do Amorim Torres) e dois artesãos (João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate, e Manoel Faustino dos Santos Lira, então oficial alfaiate, mas ex-escravo), livrando-se da severa punição um quinto personagem, Luiz Pires, também artesão, porque fugira, desaparecera sem deixar rastros.
Tem-se uma ligeira noção desse quadro com a descrição do que era Capital da Bahia em 1798, ano da derrocada do movimento. Tratava-se de uma sociedade de vizinhança, aquela em que, conforme define a sociologia, a relação entre as pessoas se estabelece por via predominantemente oral, isto é, por canais diretos de comunicação, com a escrita (canal indireto) funcionando como forma subsidiária, sujeita a graus de instrução e, por isso mesmo, constituindo-se patrimônio de poucos. 
A estrutura social de então assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado e os lavradores proprietários, que só se distinguiam daqueles por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.
A educação formal se limitava ao ensino imposto e administrado pela Igreja, isto é pelos jesuítas, reduzindo-se ao estudo das sete disciplinas da chamada Ratio Studiorum, a que poucos tinham acesso. Não havia universidade, tampouco bibliotecas, livrarias e imprensa devido às rigorosas proibições impostas pela Coroa portuguesa, desde o início da ocupação do território. Segundo o maior estudioso dessa conjuração, o professor e historiador Luís Henrique Dias Tavares, os livros e outros escritos chegavam da Europa “nas cabeças, baús, amarrados de jovens brasileiros estudantes em Coimbra”, enquanto Nelson Werneck Sodré garante que vinham de contrabando, tudo às escondidas.
E quanto à população? Luiz dos Santos Vilhena, em suas "Cartas Soteropolitanas", situava a Capitania em menos de 200 mil habitantes, sendo desses 50 mil para o Recôncavo e menos de 60 mil para a Capital, o que praticamente iria se confirmar no censo realizado pelo Conde da Ponte, em 1807, com 51 mil para a Capital, sendo 28% compostos de brancos e 72% de pretos e pardos. Desses últimos sairia a esmagadora maioria dos participantes da planejada sedição, formada por escravos, artesãos, soldados e alforriados, mas também, embora poucos, por profissionais qualificados e religiosos, como o Padre Agostinho Gomes, que facultava livros à leitura, municiando o ideário dos descontentes com o statu quo da Colônia então identificados com os princípios dos revolucionários franceses de 1789.
O essencial desses princípios reflete-se no poema revolucionário intitulado "Décimas sobre a Igualdade e Liberdade", de criação atribuída a Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque e, também, a Francisco Moniz Barreto, que o conjurado Manuel Faustino dos Santos Lira recitou, quando em depoimento o Juiz do Feito lhe perguntou se de sua letra tinha notícia, ouvindo do depoente, como resposta, que lera e decorara o poema, passando a repeti-lo oralmente. É este que agora leio, em versão crítica de ortografia atualizada.

DÉCIMAS SOBRE A LIBERDADE E IGUALDADE
Letra
Igualdade e Liberdade
No Sacrário da Razão
Ao lado da sã Justiça
Preenchem meu coração.

Décimas 
Se a causa motriz dos entes
Tem as mesmas sensações
Mesmos órgãos, e precisões,
Dados a todos os viventes,
Se a qualquer suficientes
Meios da necessidade
Remir com equidade;
Logo são imperecíveis
E de Deus Leis infalíveis,
Igualdade e Liberdade.

Se este dogma for seguido,
E de todos respeitado,
Fará bem aventurado 
Ao povo rude, e polido,
E assim que florescido
Tem da América a Nação
Assim flutue o Pendão
Dos franceses que a imitaram
Depois que afoitas entraram
No Sacrário da Razão.

Estes povos venturosos
Levantando soltos os braços
Desfeitos em mil pedaços
Feros grilhões vergonhosos,
Juraram viver ditosos,
Isentos da vil cobiça,
Da impostura, e da preguiça,
Respeitando os seus Direitos,
Alegres, e satisfeitos,
Ao lado da sã Justiça.

Quando os olhos dos Baianos
Estes quadros divisarem,
E longe de si lançarem
Mil despóticos Tiranos 
Quão felizes, e soberanos,
Nas suas terras serão!
Oh! Que doce comoção
Experimentam estas venturas,
Só elas, bem que futuras,
Preenchem o meu coração.

No que respeita à minha análise do movimento, baseada em fontes primárias e secundárias, interessaram-me fundamentalmente as relações de comunicação que permitiram, seja no nível interpessoal, pela via oral, com predominância da conversa e do recado, seja no da comunicação manuscrita, com cartas, bilhetes e avisos, atuando em dois planos: no da formação da consciência política e revolucionária e no da preparação para o levante. E pude observar que todo o processo, toda a engrenagem conspiratória, claramente se consumira em atos de comunicação, havendo, no entanto, um momento de evolução nessas relações, determinante para a frustração e o fim trágico do movimento. 
Por meio de técnica mais aperfeiçoada do uso da escrita, os rebeldes conseguiram de repente superar as limitações da comunicação de círculo privado entre pessoas, evoluindo para um nível mais amplo – o da comunicação pública, de caráter unilateral e indeterminado, mesmo em manuscrito. Foi o que aconteceu a partir da madrugada de 12 de agosto de 1798, quando a população da Capital foi surpreendida com uma série de textos manuscritos, em número de dez, afixados em locais públicos, para onde convergia grande número de pessoas, tais como portas de igreja, mercados de peixe, carne, frutas e legumes, cais do porto, portas de quartéis, tendas e oficinas de artesãos – onde em verdade efetivamente operava-se o cotidiano da cidade -, veiculando mensagens de conteúdo basicamente político-ideológico, em prol de uma reforma social, embora expresso de forma genérica. Era inegavelmente um claro avanço, com a comunicação processando-se em grau mais amplo de destinatário.
A partir daí, deflagrada a perseguição, que já vinha sendo cogitada em razão de denúncias levadas ao governador e até à Coroa em Portugal, 49 foram os presos acusados de conspiração, 40 deles distribuídos por ofícios de baixa qualificação ou simplesmente escravos, instalando-se, por conseqüência, dois processos regidos por dois desembargadores fiéis à Corte: um, Manoel Pinto de Avelar Barbedo, então Ouvidor Geral do Crime, para investigação do que se passou a chamar "boletins sediciosos", espalhados pela cidade, e outro, Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, voltado para a reunião de preparação para o levante, que fora convocada para o então chamado Dique do Desterro, naquele tempo um lugar afastado e ermo. 
Aqui reside um ponto crucial, a presença desses boletins sediciosos, que foram, para os revolucionários, como digo no livro, “o seu jornal, seu instrumento de divulgação de idéias e definições para um público mais amplo, que extrapolava o circuito da conspiração até aquele momento”. 
Tendo em vista esse aspecto, sem fazer praça de originalidade, tomei os dez boletins sediciosos que se espalharam pela cidade como a mais expressiva e inovadora forma de comunicação indireta utilizada pelos participantes da conjuração, desempenhando, para a época, o legítimo papel de jornal manuscrito, por meio do qual os conjurados difundiram as suas idéias e projetos de reforma social, com sublevação da ordem constituída, para um público indeterminado – chamado por eles de Povo Bahiense -, com características de comunicação pública, unilateral e indeterminada, como seriam pouco depois – no Brasil e na Bahia – os jornais impressos. 
Começando, primeiro, pela "Gazeta do Rio de Janeiro", autorizada por carta régia de Dom João VI, em 1808, a prática do jornalismo surgiria na Bahia, em 1811, com o pioneiro "Idade d´Ouro do Brazil", publicação de linha oportunamente submissa aos ditames do poder colonial, embora trouxesse inscritos em seu cabeçalho, com presumível toque de ironia, estes dois versos do poeta quinhentista português, Sá de Miranda; 
"Falai em tudo verdades 
A quem em tudo as deveis." 
Só que, no Brasil-Colônia, as verdades proclamadas e aparentemente aceitas eram as do regime absolutista colonizador.
Motivos de uma das devassas que apuraram a conspiração, esses dez boletins sediciosos visavam, em essência, alcançar um público, uma coletividade de pessoas, em apoio do movimento. Dirigidos ao Povo Bahiense, cinco eram encabeçados como Aviso, um como Nota e quatro como Prelo, palavra que sintomaticamente fazia ressoar a técnica de impressão inaugurada por Gutenberg, que deu origem a toda a uma consagrada cultura editorial e gráfica no Ocidente. 
Dois desses boletins vão abaixo transcritos na versão crítica de ortografia atualizada, um intitulado Aviso ao Povo Bahiense, o outro, Prelo.

Aviso ao Povo Bahiense
Ó vós Homens Cidadãos, ó vós Povos curvados e abandonados pelo Rei, pelos seus ministros.
Ó vós Povos que estais para serdes Livres, e para gozardes dos bons efeitos da Liberdade; Ó vós Povos que viveis flagelados com o pleno poder do Indigno coroado, esse mesmo Rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar.
Homens, o tempo é chegado para a vossa Ressurreição, sim para ressuscitardes do abismo da escravidão, para levantardes a Sagrada Bandeira da Liberdade.
A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, finalmente a liberdade é o repouso, e bem-aventurança do mundo.
A França está cada vez mais exaltada, a Alemanha já lhe dobrou o joelho, Castela só aspira a sua aliança, Roma já vive anexa, o Pontífice já está abandonado, e desterrado; o rei da Prússia está preso pelo seu próprio povo: as nações do mundo todas têm seus olhos fixos na França, a liberdade é agradável para vós defenderdes a vossa Liberdade, o dia da nossa revolução, da nossa Liberdade e da nossa felicidade está para chegar, animai-vos que sereis felizes para sempre.

Prelo
O Povo Bahiense e Republicano ordena, manda e quer que para o futuro seja feita nesta Cidade esse seu termo a sua revolução; portanto manda que seja punido com pena de morte natural para sempre todo aquele e qualquer que no púlpito, confessionário, exortação, conversação; por qualquer modo, forma e maneira se atreva a persuadir aos ignorantes, e fanáticos com o que for contra a liberdade, igualdade e fraternidade do Povo; outrossim, manda o Povo que seja reputado Concidadão aquele Padre que trabalhar para o fim da Liberdade Popular.
Quer que cada um soldado tenha de soldo dois tostões cada dia de soldo.
Os Deputados da Liberdade frequentarão todos os atos da igreja para que seja tomado inteiro conhecimento dos delinquentes: assim seja entendido aliás...
O Povo
Entes da Liberdade

Por isso é que, como sustentei em meu livro, esses chamados boletins sediciosos, como os classificaram o poder colonial e sua Justiça, que os revoltosos espalharam por locais de afluência pública na Bahia de 1798, embora manuscritos, sejam reconhecidos, 219 anos depois, senão como ato legítimo de imprensa, em face das precariedades técnicas vigentes, mas como dela alvissareiro embrião e prova coletiva de vontade redentora e modernizadora, para o Brasil, ainda injustamente pouco divulgada.
MUITO OBRIGADO.

*Florisvaldo Mattos é poeta, ensaísta e jornalista, professor aposentado da UFBA. Texto de palestra que constou da programação de Sessão Especial realizada no plenário da Assembleia Legislativa da Bahia, na manhã de 25/08/2017, às 09:30 horas, por proposta da deputada Fabíola Mansur, que a presidiu, em comemoração aos 219 anos da Revolta dos Búzios (1798).

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

..o diabo, ah, o diabo mora nos detalhes..Micheliny Verunschk.(capturas do Facebook)


para dizer sobre ela, copio seu estilo....admiro esta criatura, não só como pessoa ,onça, leoa, como grande escritora e poetisa.Agora flagro-a no facebook, em que suas palavras são as minhas; assim além de tudo pensamos próximos, aqui vai...
paulo vasconcelos

Micheliny Verunschk -onça verunschk

por que é importante a demarcação de territórios da literatura escrita por pessoas que vêm das fileiras de alguma minoria, se não é o fato de ser minoria que lhes garante qualidade (qualidade literária, essa categoria móvel segundo os interesses da crítica)? porque é justamente o fato de pertencerem a alguma minoria que, de partida, as invisibilizam. a qualidade literária do livro escrito por uma mulher ou negro ou índio ou homossexual só interessa se conseguem driblar o "crivo do cânone". o livro escrito por um homem, branco, ocidental, de partida não precisa desse jogo de corpo.
anos atrás eu dizia "não existe literatura feminina, negra, indígena, gay, dos anjos. existe literatura". isso no mundo ideal. no mundo real é preciso etiquetar para excluir. a literatura feita por pessoas vindas de minorias precisa, no mundo real, estar sempre justificando sua existência, precisa sempre pedir licença para estar onde quiser estar. para que eu escreva bem é preciso que eu escreva apesar de. apesar de ser mulher, por exemplo. ou que o autor X esconda sua cor, sua identidade.
quando Manuel da Costa Pinto fala, por exemplo, que os autores convidados por essa Flip atendem a expectativas extraliterárias o que ele quer dizer, sem rodeios, é que aquele lugar não deveria ser ocupado daquela forma ou "o que eles estão fazendo ali?". uma questão como essa nunca seria colocada para autores homens, brancos ou que correspondam às expectativas do "crivo do cânone".
o diabo, ah, o diabo mora nos detalhes.


*Micheliny Verunschk (RecifePernambuco1972) é uma poetisa, romancista e historiadora brasileira.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

EXISTEM MINORIAS ONDE HÁ SEMPRE MAIORIAS? (capturas do Facebook)



Olá, sempre é bom flagrar bons escritores que tem algo a dizer de atual e que atendem aos desejos do social, Prof. Dr. Florisvaldo Mattos-  UFBA, isto no seu facebook...   https://www.facebook.com/florisvaldo.mattos
Paulo Vasconcelos
...
Recebo por e-mail (como talvez dezenas de outros destinatários) este alentado texto do austríaco-baiano Reinhard Lackinger, que, desafiando êxtases sensoriais, aufere o prazer de degustar todas as tardes um chope gelado numa luminosa calçada, mirando o pôr-do-sol do Porto da Barra, que é só um espetáculo de luz e cores, no qual põe em discussão o significado e a veracidade do termo "minorias", talvez a palavra mais presente em debates socioculturais da atualidade brasileira, depois de corrupção, ao que deduzo, divisando nisso uma contradição, desde que o que em geral se chama de "minorias" são na verdade e na essência maiorias. Por exemplo (quase transcrevo o que ele diz): como aceitar que 80% da população de Salvador, composta de negros e afrodescendentes, possa ser classificada como "minoria"? Dá realmente para pensar.

Sem se alçar patrono de um debate, creio que a instigação de Lackinger merece, além de leitura, detida e serena, apreciação e reflexão e, por isso, resolvi reproduzi-la abaixo, em compartilhamento. Portanto, enrosquem-se nela e se manifestem.

Quando as Minorias tendem a ser Maioria
Reinhard Lackinger
Confesso ter dificuldades quando o assunto é "minorias"! Principalmente em se tratando de indígenas e negros deste nosso Brasil!
Pindorama estava cheio de indígenas de tudo que era tribo. Por essa razão podemos falar em minorias dos erroneamente chamados índios, só depois de boa parte da chacina, do genocídio ter sido consumado!

Por que será que mesmo com toda essa matança sobraram mais indivíduos nativos no Brasil do que na América do Norte? 
Terá sido por causa do clima inóspito nas florestas amazônicas, os pantanais cheios de répteis, piranhas, jacarés, onças e insetos transmissores de malária?

Será que foi porque nossa gente desde sempre preferiu deitar-se com as índias em vez de matar aborígenes? É pelo menos essa a ideia que Pero Vaz de Caminha nos passou!
Minhas dúvidas acerca desse tema não param por aí. 

Quantas vezes já não vimos reportagens de TV mostrando disputas por de terras indígenas, tendo o fazendeiro invasor quase branco mais cara de índio do que os supostos nativos?

Quantos rostos com traços indígenas costumamos encontrar diariamente nas ruas, nos shoppings, nos escritórios e no congresso? Há minorias e mais minorias ao nosso redor do que imaginamos.

Se os EUA têm gente famosa oriunda de povos nativos, nós também os temos!
Na música por exemplo, que me ocorre neste momento. Lá eles tem os saudosos trombonistas do jazz Kid Ory e Jack Teagarden. Nós temos o nosso Rei Roberto Carlos. O rosto e os cabelos de nosso pop star de Cachoeiro de Itapemirim não me deixa mentir. Repare se as feiões dele não se parecem com as de um cacique, de um pajé ... ou melhor, com as de uma "squaw"!

O finado cacique do povo xavante e deputado federal Mário Juruna tem sido minoria absoluta no congresso nacional. 
O talvez primeiro cidadão e político brasileiro a denunciar as maracutaias e ladroagens de congressistas. Ele quase perdeu o mandato por ter tido essa coragem!
Não deve ser nada cômodo e fácil pertencer à minoria indígena do Brasil.
Marcos Terena, aviador, líder indígena e escritor, quando ainda estudava, chegou a declarar-se descendente de japonês, segundo ele próprio confessou diante de câmeras de televisão.

Enquanto um número cada vez mas reduzido e menor pode justificar o uso da expressão "indígena", o que dizer dos negros brasileiros?
Como uns 80% dos habitantes da Roma Negra, de Salvador podem ser considerados "minoria"?
Ouso arriscar um palpite e sugerir que 99% desses 80% permanecem invisíveis aos olhos dos que se julgam brancos. Sobra assim apenas uma minoria de negros com os quais nós nos relacionamos diariamente e em nosso círculo mais íntimo. Com a crescente falta de serviçais e empregados domésticos, essa "minoria" tende a ficar ainda mais reduzida. 
Outro detalhe importante! Nem todos os negros pertencem à mesma minoria!
Uns vivem cercados por todo tipo de cuidados, outros convivem com urbanização, ordem pública e situação familiar precárias. 

Deve ser por isso que o sistema de cotas para negro e índio ter acesso à universidade não contempla quem tenha feito o primeiro e segundo graus em escolas particulares.

Considero cotas para acesso a instituições de ensino e o serviço público coisa séria, embora saiba que qualquer sistema, por mais bem elaborado que seja, é injusto! Mais injusto porém seria manter o ônus das desigualdades sociais apenas nas costas dos negros e mestíços!
Ações afirmativas devem importar mais para quem pertence a alguma minoria. 
Assunto cheio de opiniões conflitantes. Direitos iguais para mulheres, transgêneros e todos que se assumem como "minoria". Inclusive algum imigrante acidental vindo dos Alpes austríacos, residindo no Brasil há quase 50 anos.

E por falar em cotas ... Na época de Hitler e do nazismo e desde 1933 havia o tal "passaporte genealógico", o "Ahnenpaß". Quem conseguisse comprovar a "limpeza étnica", ou seja, de não ter nenhum judeu, cigano ou outro parente de origem "suspeita" na árvore genealógica até o ano 1800 conseguia obter esse documento tão desejado por uns. Ele permitia por exemplo que os filhos da família com "Ahnenpaß" estudassem em instituições de ensino especial que visavam formar oficiais para o Terceiro Reich que haveria que durar 1.000 anos. Os arianos eram para ser maioria, imagino! Não sei dizer se os tais arianos e alemães com "Ahnenpaß" chegaram realmente a ser maioria no povo alemão e austríaco. Duvido muito! Só sei que esse nefasto desvario durou apenas pouco mais de uma década.
O encontro de minorias costuma promover tensões, mas também alta cultura. Sem choques de costumes diferentes não há alta cultura! Percebemos isso em cidade que em dado momento tiveram um forte afluxo de imigrantes. Foi assim com a capital do Império Austro-Húngaro, Viena, com Nova Iorque e também com São Paulo.
Há minorias nas respectivas colônias no cone sul do Brasil que num primeiro momento visavam apenas a sobrevivência. 
Quando a fome deixa de ser o inimigo comum, as aspirações dessas minorias podem sofrer uma curiosa metamorfose, podendo desencadear até o desejo de separar-se do país que os acolheu. Foi mais ou menos assim com os diversos "países coroa", as tais "Kronländer" que haviam constituído a Monarquia do Danúbio, com a antiga Iugoslávia e com a União Soviética. Por enquanto, o sucesso e o destino da União Europeia está incerto.

Penso que o desejo das minorias - visíveis ou não - é a perpetuação de seu idioma, de sua cultura! Da mesma forma que as monoculturas rurais e urbanas são danosas a um país, passar o trator por cima de diversidades humanas fatalmente termina em tragédias e no crescente fascismo que assistimos hoje de camarote.
Quanto mais miscigenação, mais cultura, menor chance do indivíduo sentir-se superior ao próximo e menor possibilidade da volta do "nazifascismo"!
Salvador, 16 de agosto de 2017

Ilustração: "Retratos da Bahia", de Carybé.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

A melodia às avessas de Samarone Lima ....por :Rev Brasileiros



De Crato a Recife, conheça o poeta da memória e da música silenciosa



Todo poema tem a missão de provocar no leitor algo que o incomode, que o faça se perder (…). Como diz Juarroz:
‘A poesia é o maior realismo possível’. Ela salta o nome das coisas, para nomeá-las de outra maneira. Desnorteia. Puxa o tapete”
Samarone Lima é um cavalheiro, jovem-antigo, pesca fatos como jornalista e embrulha palavras com sua poesia. Seu lirismo se debruça sobre os mais diversos acontecimentos e os transforma em versos, embebidos de uma política do subjetivo sobre a qual alisa sílabas, dá contorno à palavra e consistência ao poético.
O professor e crítico literário Lourival Holanda escreve no posfácio do primeiro livro de poesias de Samarone, o duplo A Praça Azul & Tempo de Vidro (Editora Paés, 2012): “Na agreste figura dele, a poesia surpreende como a floração de um mandacaru… O poema de Samarone vai na contramão do consensual e, porque um hino à memória, guarda o mel dos momentos mágicos num processo de retenção sem pressa… E assim o poeta reconstrói sua delicada geometria de esplendores…”.
Sama nasceu, em 1969, no Crato (CE), mas desde 1987 vive em Recife. Tem trabalhado em diferentes projetos literários, como os livros-reportagem  (1998) e Clamor (2003), que estão sendo adaptados para cinema, e os livros de crônicas Estuário (1995) e Trilogia das Cores (2013). Só recentemente passou a publicar sua obra poética. Seu livro mais recente é O Aquário Desenterrado (Editora Confraria do Vento, 2014). Samarone recebeu a Brasileiros em uma livraria em Recife, onde batemos o papo a seguir.

Brasileiros – Fazer poesia é um ato político?
Samarone Lima – A literatura é sempre um ato político. E, se for sutil, abre mais espaços em pensamentos fechados. A palavra sempre me abriu caminhos. Como sempre publiquei muito as crônicas no meu blog (estuario.com.br), a quantidade de leitores era enorme. Fui publicando os poemas de forma quase clandestina em outro blog (quemerospoemas.blogspot.com). Era um problema existencial. De um lado, eu não queria muito mostrar os poemas. De outro, me lamentava ser conhecido apenas como cronista, jornalista. O fato de um leitor ter me encontrado e instigado a mostrar a poesia foi determinante. Devo isso ao amigo Arsênio Meira Jr., grande amante e conhecedor de poesia.
Brasileiros – Um de seus temas é a solidão na infância, a adolescência, as…
S.L. – … As muitas coisas. A solidão da infância, as dezenas de casas onde vivi, do Crato, no Ceará, passando pelo Maranhão, depois Fortaleza, Recife, São Paulo. Tentei apenas decifrar meu mundo de forma poética. A poesia pode também ser memorialista, mas não tem uma linha reta como na prosa.

Brasileiros – Você tem um memorial poético bem exposto na sua poesia… mãe, primos, etc.
S.L. – No meu primeiro livro duplo, temos as duas vertentes. A Praça Azul traz poemas soltos, com aparições da memória. Em Tempo de Vidro, fiz uma espécie de ritual da memória, indo aos antepassados, passando por mim, chegando novamente aos velhos. Em O Aquário Desenterrado, deixei que tudo viesse da forma mais pura, aberta. Cito nomes de tios, falo dos primos, do meu pai, dos irmãos. Me senti muito bem acompanhado. Nós e nossas dores, alegrias, fracassos, como uma grande constelação.

Brasileiros – O poeta tem o que se chama inspiração ou essa é uma palavra oca?
S.L. – Acredito que tenho, sim, dias mais inspirados. A escrita sai quase de uma fonte cristalina, basta se agachar, juntar as mãos e beber dela. Mas há dias duros, de luta mesmo, de frio, cansaço, solidão. Neste caso, recorro aos diários. Tenho dezenas de cadernos, que sempre me trazem alguma surpresa, uma frase, um tema. Cadernos velhos são meus fertilizantes.

Brasileiros – Quais autores brasileiros são para você um ponto de partida ou de chegada?
S.L. – Sendo meio óbvio, Murilo Mendes e Jorge de Lima. Mas tenho minha ramificação poética com outras fronteiras. Roberto Juarroz e Juan Gelman (argentinos), T.S. Eliot (norte-americano/inglês) e o abismo que é o Vicente Huidobro (chileno).

Brasileiros – Você tem uma relação mística, sagrada, com o exercício da poesia?
S.L. – Sim, creio, porque a palavra, em sua raiz original, tem o sagrado e o dom. Eu realmente trato a poesia como algo sagrado. O dom é outro aspecto, que tem o mistério rondando. Nunca sei de onde um poema vem, nem para onde vai. Tento esse exercício da poesia com as coisas cotidianas, os sobressaltos, impasses, desenganos, frustrações. Não é por acaso que meus parentes são personagens de vários poemas, eu mesmo apareço e me deixo desnudar. Vou construindo uma poesia que sirva para dar conta da minha vida, mas tentando ir sempre ao encontro do leitor.

Brasileiros – E qual seria uma definição de poesia para você?
S.L. – Poesia, para mim, é o descolamento silencioso, rastejante da palavra em relação ao objeto contemplado. Um descolamento da palavra de seu significado habitual. Eu busco essa renúncia. Não apenas para sentir-me completo, mas também para conservar a tradição milenar de entender a poesia como uma espécie de música quase silenciosa. Uma melodia às avessas. Como diz um poeta que me é caro, o argentino Roberto Juarroz, a poesia é um “visionária e arriscada tentativa” de levar o homem ao espaço do impossível, que às vezes se parece também com o espaço do indizível. É meu testemunho, minha obsessão. De novo Juarroz: “Uma peregrinação de meu destino através da linguagem”.

Brasileiros – Você vê seus versos pelo buraco da fechadura, como diria Nelson Rodrigues?
S.L. – Meus versos não são próprios (exceto um ou outro) para serem lidos em voz alta (não cabem na “declamação” porque isso guarda um elemento teatral). Há algo de contido, até porque tinha uma timidez assombrosa em mostrá-los. Quem me salvou do anonimato poético foi o amigo Arsênio Meira Jr., que fez uma seleção do primeiro lote que publiquei silenciosamente na internet (quemerospoemas.blogspot.co). É um despojamento, um desnudamento. Já tive oportunidade de fazer algumas raras leituras, mas prefiro em voz baixa, quase um sussurro, até porque me emociono quando vou ler. Essa emoção que me leva ao engasgo, é o que tento levar ao leitor. A poesia que me comove e que tento escrever se move pela completude amorosa, compreendendo, sobretudo, a memória e o exílio das minhas desarmonias, que são muitas.

Poema inédito
Manual de espera e solidão
Como no silêncio sem rastros
De um animal desvairado
Com seu cheiro difícil de esquecer
de tão próximo.

Ou como o espaço que lhe damos
Entre os ossos
Dessa ausência doentia
De tudo o que se quer.

Como se aquilo que se perde
Não virasse outro abismo –
O de ter sido.

E mesmo assim, se promulga a voz
Do absoluto desejo.

Tão imaculado, tão limpo, tão puro
Que sequer precisa de um nome
Para saber-se vivo.
Brasileiros – A relação entre prosa e poesia?
S.L. – Bem, enquanto a prosa tem um sentido lógico, definível, a poesia é alógica, evoca sentidos vários, não tem medida, exceto aquela que enxergamos. Talvez por isso os meus versos tenham demorado tanto a serem publicados. Eu desejava que eles tivessem a força de um filho há muito esperado, e que depois segue seu caminho. Eles ainda são muito duros, mas até a dureza tem algo de contido. A Praça Azul & Tempo de Vidro foi o livro possível, mas que resultou em uma espécie de alívio. Fiz minha inauguração. No final de 2013, veio O Aquário Desenterrado. Vi que estava com a alma mais livre, que podia dizer de forma mais intensa o que me era caro. As minhas contradições, memórias, minha vida feitas de tantas casas, tantas cidades, vivências. Um desaprumo que a poesia me possibilita refazer. Desejo apenas seguir nesta jornada pela poesia, sem nenhuma pressa.

Brasileiros – A busca pela completude amorosa é a qualquer preço?
S.L. – Não. Há condições. Logo no primeiro poema de O Tempo de Vidro, isso soa claro, como neste trecho: “Quando voltei/Aos seios de minha mãe/Morri de sede./Minha parte no mundo/Era destinada ao desconhecido/Que sempre fui”. Isso não é nem uma introdução de poema, isso é uma recomendação a mim mesmo. Lá, já nas origens, tudo se configurava. No meio do espanto, me vi escrevendo cada vez mais poesias, fazendo um diário de minha própria trajetória, tentando me reconhecer e me perdoar. Não sei se consegui, porque o perdão é uma tarefa para a vida inteira.
Todo poema tem a missão de provocar no leitor algo que o incomode, que o faça compreender, ou mesmo se perder, pois afinal de contas, perder-se também requer um roteiro, um caminho, um mapa necessário para subirmos novamente a montanha. Como diz Juarroz: “A poesia é o maior realismo possível”. Ela salta o nome das coisas, para nomeá-las de outra maneira. Desnorteia. Puxa o tapete, escancara o coração. Deve nos fazer pensar. Não lembro agora o autor de uma frase belíssima (não sei se foi o Jean Cocteau), que perguntou o seguinte: “– Se sua casa estivesse pegando fogo, o que você salvaria primeiro?”. Eis a resposta: “– O fogo”. Assim entendo e vivo a poesia. Uma urgência enlaçada pela afeição desesperada.

*Arsênio Meira de Vasconcellos Junior é bacharel em Direito, ocupa um cargo público e é um viciado em poesia e incentivador da poesia brasileira.