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segunda-feira, 16 de maio de 2011

O que Wim Wenders viu com os olhos de Pina

FOTO IMDB
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12.05.2011 - Jorge Mourinha, em Berlim


Wim Wenders demorou um quarto de século a trazer ao cinema a obra coreográfica de Pina Bausch; foi precisa a evolução do 3D digital para lhe fazer justiça. Rejuvenescido e emocionado pela experiência, explica como, mesmo depois de morta, a coreógrafa guiou todo o processo de criação deste "trabalho de amor"
"Pina", o filme que Wim Wenders fez para maior glória da coreógrafa Pina Bausch (1940-2009), e que está desde ontem nas salas portuguesas, não é apenas mais um documentário de um cineasta habituado ao género (desde o "Nick's Movie" com Nicholas Ray, 1980, ao enorme sucesso de "Buena Vista Social Club", 1999, passando por "Tokyo-Ga", 1985). Nem é "apenas" "mais um" filme: "Teria abandonado tudo o que estivesse a fazer para fazer este filme. Era algo que eu queria mais do que qualquer outro projecto desde meados dos anos 80. Mas não sabia como. Havia algo de tão mágico no trabalho de Pina que eu sabia que as câmaras não seriam capazes de o capturar. Havia algo que acontecia em cada representação... algo que sentíamos no nosso próprio corpo e que dificilmente se podia traduzir em filme. Eu não podia dizer que iria filmá-la melhor do que qualquer normalíssimo registo filmado de uma peça. Não era suficiente", diz-nos em Berlim, dias depois da estreia mundial do filme.

É um "trabalho de amor" que Wenders transportava há quase um quarto de século, em associação muito próxima com a própria coreógrafa, desaparecida subitamente em 2009, literalmente na véspera do início das rodagens. "Originalmente, Pina teria sido o centro do filme, mas não num sentido biográfico - ela não queria que se falasse muito dela, por isso o filme era sobre o seu trabalho e o seu olhar. Tínhamos chegado a acordo para fazer o filme sobre o modo como ela olhava para o trabalho e para os seus bailarinos, e o modo como transformava isso nas peças. Ela não confiava nas palavras, confiava apenas nos seus olhos, nos seus sentimentos, e tinha os olhos azuis mais penetrantes, verdadeiros e profundos que se possa imaginar. Quando ela olhava para nós, sentíamos que via atrav??s de nós. Não havia segredos. E era um olhar protector, de amor. Ela via realmente tudo. E essa capacidade talvez excluisse as palavras. Ela não gostava de palavras, por isso a dança era algo que surgia para fazer aquilo que as palavras não podiam. Éramos amigos e eu percebia a sua reticência, a sua dificuldade, mas foi apenas a trabalhar neste filme e a aplicar esses princípios que o interiorizei realmente."

Que o mesmo é dizer: o mais universalmente reconhecido dos cineastas alemães da "renascença" dos anos 70, o homem de "O Amigo Americano", "Paris, Texas" e "As Asas do Desejo", reencontrou-se (depois de uma longa série de filmes menores) no processo de se apagar perante a obra de outrem? "Aprendi mais do que nunca. Aprendi a confiar nos meus olhos de modo diferente, aprendi a confiar no que as câmaras podem fazer sem palavras e aprendi que a verdadeira essência de um documentário é conseguir que aquilo que queremos transmitir possa ser mostrado da forma mais bela possível. E isso é uma abstracção que eu não tinha sido capaz de compreender antes. Creio que a natureza do trabalho de Pina exigia que eu não me impusesse à sua arte, e devo dizer que isso é um processo que não é fácil". Sobretudo para um cineasta: "Nós, cineastas, somos convencidos por natureza - já trabalhámos com estrelas, conhecemos a linguagem corporal, sabemos o que é a presença de um actor e como tirar o melhor dele e pô-lo confortável para ele poder dar-nos essa presença... Depois vemos Pina e compreendemos que nem estamos no mesmo planeta. Não somos sequer capazes de chegar perto do que ela é capaz de ver."

Ressurreição

Nesta tarde de Fevereiro no hotel Adlon de Berlim, perante uma mesa-redonda de jornalistas europeus, há na voz de Wenders - mesmo afectada por uma garganta inflamada - uma emoção que dificilmente se traduz em palavras. É apropriado: já a estreia mundial do filme na edição 2011 do Festival de Berlim, fora de concurso, tivera algo de catarse para quem lá esteve. E o realizador nunca esconde que o simples facto de "Pina" existir é em si mágico. Este é, verdadeiramente, um filme "ressuscitado", porque a morte súbita de Bausch, dois dias antes do início das rodagens ("o inimaginável"), literalmente interrompeu a produção.

"Já nada do que tínhamos sonhado era possível, era o fim de um longo sonho que tínhamos sonhado juntos. Era a primeira vez que eu poderia ter feito o filme como ele devia ser feito, o primeiro ano em que a tecnologia existente era capaz de filmar como eu queria; sem o eixo espacial [do 3D] eu não podia imaginar o filme. Tínhamos chegado tarde de mais e foi muito doloroso compreendê-lo", lamenta Wenders.

Coube, então, à companhia de Bausch relançar o projecto. "Foram os actores que me empurraram e que me disseram: 'Pensa duas vezes. Não podemos apenas desistir, queremos que estas peças continuem a existir de outro modo.'"
Depois de filmadas as quatro peças escolhidas originalmente pela coreógrafa - "Café Müller" (1978), "Vollmond" (2006), "Kontakthof" (1978) e "Le Sacre du Printemps" (1975) -, "houve uma pausa longa". "Eu tinha de preencher o 'buraco' que a Pina tinha deixado. Levou algum tempo, e acabou por ser simples, mas por vezes as coisas mais simples são as mais difíceis. A Pina tinha trabalhado durante 30 anos com os seus bailarinos e tinha desenvolvido as peças sempre usando o mesmo método: fazendo-lhes perguntas, repetidamente, à volta de cada tema. Eles não podiam responder às perguntas com palavras, apenas com os seus corpos, e era isso que ela transformava nas peças. E compreendi que essa era a única maneira de fazer este filme. Os bailarinos dar-me-iam as suas respostas sobre o método de trabalho. Ver e observar a linguagem corporal dos seus bailarinos foi a única coisa que me permiti usar e foi uma revelação incrível fazer um filme que não confiasse nas palavras", afirma.

O que não faz de "Pina", longe disso, um filme sem palavras. "Alguns dos bailarinos dizem coisas e partilham algumas memórias, mas", segundo Wenders, "podemos ver o filme sem elas": "Não trazem explicação, apenas textura. Os bailarinos responderam às minhas perguntas a dançar, e continuaram a fazê-lo até eu compreender o que eles queriam dizer. Depois filmámo-los em exteriores, e isso é realmente a única coisa que eu próprio trouxe ao filme. Tentei encontrar exteriores que correspondessem a e realçassem o melhor possível o que os bailarinos queriam dizer. E eu estava tão ocupado a tentar compreender o novo meio que estava a usar e a aplicá-lo do modo como tinha prometido a Pina que a decisão de deixar de fora as palavras foi quase um alívio."

Pina em 3D

Esse "novo meio" é o 3D digital, para Wenders o único modo de conseguir traduzir para imagens a tal fisicalidade, a tal magia da obra de Bausch. Mas não foi fácil chegar ao resultado final. "Os primeiros testes foram um desastre. O espaço estava lá; a espacialidade não era um problema, mas não era capaz de dar uma representação elegante do movimento."
Aos poucos - num processo que durou dois anos de preparação até a equipa se sentir pronta a filmar com a companhia da coreógrafa -, a tecnologia aproximou-se do que Wenders desejava. "Precisámos de software diferente, forçámos muito a tecnologia, tive a ajuda de um 'estereógrafo' que acima de tudo estava interessado na fisiologia da questão. Era essa a chave - estamos a tentar simular o que os nossos dois olhos fazem com duas câmaras que nunca serão capazes de substituir dois olhos. Houve muito a aprender não apenas em termos de tecnologia mas também no modo como o olho humano funciona, e fomos capazes de nos aproximar o mais possível disso neste momento particular."

Não por acaso, são os olhos que Wenders retém da mulher com quem partilhou este sonho impossível ao longo de um quarto de século e que homenageia no filme terminado, definido como "um filme de Wim Wenders para Pina Bausch". "Pina era uma mulher lindíssima, e a única coisa em que não consigo parar de pensar quando penso nela são os olhos. Para mim, a chave do seu ser, do seu trabalho e da sua arte era o modo como usava os olhos, como era capaz de transformar algo que ela via em algo que nos emocionava. Este teatro não existia antes, ela inventou-o. Para os seus olhos serem capaz de exprimir o que queria, era precisa uma arte nova, uma plataforma nova. Ela foi uma grande inventora, talvez até uma investigadora - criou toda uma nova mitologia sobre o que se pode ler na relação entre os homens e os mulheres através dos corpos, da línguagem corporal, dos gestos, do modo como eles se aceitam, se revelam, se rejeitam. Ela criou um vocabulário preciso para isso, sem recorrer a palavras, apenas por saber ver, e por ser capaz de o transformar, com os seus bailarinos, em algo que todos podem ver."