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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Avesso da Palavra, Poesia Paulo Vasconcelos



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“O que digo é um desdizer como cuspir para dentro, não reverbera”, “Tenho medo dos dicionários que dizem palavras presas”.





Um percurso pelo Avesso da Palavra
Palavra, tempo, memória: são as peças que escolho para seguir o fio que me conduz pelo Avesso da palavra.
É preciso de um fio condutor: existe um, dado pela sequência de poemas, e também vários, puxados por cada leitor, que se deixa perder na solidão da “cartografia vencida” do poeta, labiríntica como o ser.
Falo do poeta, mas falo de mim. Falo do poeta, mas do sujeito em devir. Permitem-me isso a ausência de títulos para os poemas, os movimentos que sugere cada parte do livro (uma ordem, entre outras possíveis), além do próprio jogo proposto pelo trabalho que é feito com a palavra.
Colocar a palavra pelo avesso, dobrá-la/desdobrá-la, é buscar pela “despalavra”, é “catar feijão”. É , como diria Roland Barthes, “trapacear” o tempo inteiro com a linguagem, como um jeito de não se aprisionar pelo seu “fascismo”: tentativa de dizer as coisas, o mundo, as coisas do mundo, por imagens, como no primeiro poema, em que tempo, morte e baía sem peixes e crustáceos são encadeados de forma a compor uma unidade que não se basta e é sempre movimento: “Os estômagos das palavras fazem cadeia [...] / Explosões destes estômagos e seus cais”.
O “homem palavra”, sujeito que se elabora nos poemas, reconhece que é feito de linguagem, mas anda “à procura de palavras para abafá-las”. E, embora as palavras sejam pouco para o mundo, contraditoriamente, é por meio delas que se pode “focinhar a vida e gritá-la como se assim ardesse menos”.
Assim é que Paulo Vasconcelos desnuda o teor do seu fazer poético, como é possível perceber em inúmeras passagens da travessia: “Eu lia com as mãos [...] / Eu aprendia com todo o corpo / Hoje fecharam as mãos para o mundo e se aprende só com as letras”, “O que digo é um desdizer como cuspir para dentro, não reverbera”, “Tenho medo dos dicionários que dizem palavras presas”.
Nesse jogo, entretanto, Vasconcelos faz reverberar, além da literatura oral, Manoel de Barros e João Cabral de Melo Neto, outras vozes, como a de Octavio Paz, para quem a imagem poética tem o objetivo de dizer o indizível. Escreve Vasconcelos: “Poemar é nada dizer dizendo o que é inacessível”.
É precisamente por conta dessa busca sem fim e pela impossibilidade de representar a realidade que, segundo o olhar de Barthes, existe a literatura. Dessa maneira, faz-se a poesia de Vasconcelos: “O real nos doerá para sempre” (Orides Fontela).
Por essa trilha, tempo e memória são tramados e destramados ao longo dos poemas, que, no desengasgar da palavra, expõem um sujeito que se reconhece incerto e se reelabora através da linguagem:
Meu coração não tem fibra
O poema dá-lhe franja
Mas não finjo nem digo
Apenas assoletro o que o juízo me dita
Junto com as minhas mentiras
Verdade escolhidas
No manto do homem palavra

Se a percorro de posse de uma “cartografia vencida” e colho os signos pelo avesso, a memória, o passado, com que me deparo é refeito “por imagens, por eflúvios, por afeto”:

Não sei de onde venho,
Não sei de onde fui,
Sei que sou de nada
Sou estampa desbotada entre pedaços de linhas retrós
Botões em costureiro velho

Nesse sentido, vários elementos são combinados de forma a compor uma espécie de mitologia pessoal, atravessada, além de leituras – algumas já destacadas – por diversos símbolos.
Estes remontam a tempos e espaços singulares (a infância, o Nordeste, a cidade de São Paulo...), entretanto, simultaneamente, mitificados: “No pão doce do meu pai / as abelhas estancavam [...]/ Pintando aos abanos as tardes na padaria”, “Caranguejos [...] / que silenciosamente confabulam com nichos de águas e dejetos assoletrando / Capibaribe”, “[ ...] o sol batendo nas arueira do sertão”, “Um coração vazio e aliviado como cabaça na seca”, “flores de sabugueiros”, “cianinhas brancas”, “Minha vó ao centro da máquina pedia-me / A colher e punha se a mexer o açúcar / Que coloria a casa de sabores de notas violadas”, pés de castanheiras, “E me apaulistei pouco a pouco mas nunca esquecerei / Das vogais do meu coco catolé”, “Nas vielas da cidade adotada falta cheiro de cajueiro / Tem ausências de cantares de borboletas no cio”, “Vendia abacaxi no centro e dizia o mior abacaxi de Sampalo com cheiro de me de abelha” são algumas das imagens que constituem um sujeito em devir: palavra, bicho, árvore, cidade...
O passado recuperado pelas palavras não é o espelhamento de uma sequência de fatos vivenciados por um verdadeiro eu, mas resultado de um processo de leitura e reescrita de si levado a cabo pelo sujeito múltiplo que ganha corpo nos poemas.
Sem pretender esgotar os sentidos para a poesia de Paulo Vasconcelos, esta breve travessia é, portanto, um convite para que o leitor trace seu rumo por entre as brechas da linguagem, por suas dobras. Mediante esse traçado, é possível desfrutar do prazer do texto, ao percorrer o espaço de fruição que se cria entre escritor e leitor pela dialética do desejo que entre eles se estabelece.

Antonio Laranjeira
Doutor em Teoria da Literatura
Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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