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sábado, 20 de janeiro de 2018

REUBEN DA ROCHA - A POESIA DE NOVO ENXAME LEXICAL




A poesia é feito cobra mansa, braba, bico de ema, sapato furado ou papel de seda em desmonte — assim o poeta que lambe o mundo de verdade trata (quase) tudo, destrata, seleciona, diz, rediz; não agrada-me adjetivos a qualificar o poeta. Prefiro ler, sentir, gostar ou não gostar da rede de palavras que ele tece, morder e tirar meu sentir. Chama-me atenção em qualquer poeta sua teia de palavras, seu mundo lexical, seus adornos, seus investimentos político-sociais, a pintura do seu imaginário, a saída dos lugares comuns, o modo de entortar palavras, a escrita, e lá vai.

Esses agrupamentos de características, sublinho-os, faz-me abrir mais as pestanas e entrar dentro do poema — foi o caso de Reuben Rocha. Aliás, há uma afirmação dele para o estar e ser poeta quando diz: "A tarefa do poeta é o trânsito. É você conseguir fazer a tradução e a passagem de um mundo para outro." 

É sempre difícil nos definirmos, ás vezes só apelando para uma prosa poética quando escapa talvez algo de si. Aqui nesta afirmação quiçá ele se diga um pouco: "Eu sou um bicho do mato vivendo em uma megalópole do terceiro mundo. Eu nasci numa ilha, gosto de conversar com o vento, com o movimento das marés, com a gradação da luz do sol. Quando eu penso em tecnologia, me parece um monte de sucata que já passou..."

Reuben teve destaque merecido em um dos números do Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco, que considero um dos bons meios da Literatura e Arte neste país, ainda que pouco conhecido. Tendo como mediadora da matéria/entrevista Giani de Paula de Melo, da área de Letras.

Paulo Vasconcelos





LOGO ACIMA DO SILÊNCIO DO ÍNDIO Q SE SUICIDA

o enforcado sonha em disparada desta atmosfera pesada p/ outros mistérios + esferas
logo acima
dos abacates suspensos podres 1tupi akira
vara a febre do mosquito galopa aflito p/1lugar longínquo + escapa
às tentativas de assassinato
vista multidimensional do universo
amplo ataque do enxame sobre o exército
...
.....http://bit.ly/2Bhihzt
Abaixo segue  matéria do referido suplemento e seu link:




 http://bit.ly/2mUv2L2
Escrito por Gianni Paula de Melo (imagem: Beatriz Sano/ Divulgação)



Enquanto preparava o texto desta entrevista, a mais canceriana de tantas que já realizei, me vi em algumas conversas com pessoas que não conheciam o Reuben da Rocha e que me perguntaram como era a sua escrita. Eu dizia: é algo entre os índios e os astronautas, é sobre tornar inteligível a nave espacial para um lagarto. Nascido em São Luís (MA), mas morador de São Paulo, o poeta, também conhecido por cavalodadá, é das potências mais estranhas e fascinantes da poesia contemporânea brasileira. Por não ter publicado por selos comerciais, ainda escapa a muitos leitores.
Em tempos de abismo e histeria coletiva, não é em toda esquina que alguém te diz que “a evasão pode ser um direito que as pessoas estão exercendo muito pouco”. É preciso coragem para bancar um projeto poético que ressoe alegria e saúde, uma vez que existe um preço em ser um sujeito deslocado que recusa os discursos do medo e da melancolia da época. Escaldante, seu livro mais recente, realizado a convite do selo Livros Fantasma e disponível para download (no site livros-fantasma.com/catalogo), traduz bem esse projeto.
No tocante às publicações, seu trabalho de mais visibilidade até hoje talvez seja a série Siga os sinais na brasa longa do haxixe, espécie de distopia que o autor designa como “epopeia do terceiro mundo”. Nesta conversa com o Pernambuco, Reuben explica a contribuição que lhe é possível dar como artista, fala sobre seu gesto de preservação do entusiasmo e indica os poetas e experiências que se comunicam com a sua produção.

Quem é cavalodadá?
É uma tentativa de criar uma poética a partir da degradação linguística deste século. É uma “personagem semiótica”, que apareceu em uma música que fiz e já nem lembro, um “cavalo dado” em versão travesti. E é aquele que incorpora de maneira onívora, um cavalo com o “dial” girando solto. Mas um nome vai ganhando sentidos que você não espera. Nos últimos anos, acabei descobrindo que Dadá é um nome de Xangô na Bahia, e Xangô é um orixá que é muito próximo de mim. Cavalodadá é um aspecto da minha poética, e eu sei que ainda vou ter muitos nomes na vida.
A poeta Júlia de Carvalho Hansen, certa vez, me disse que te considerava um poeta-xamânico-cognitivo. Por que ela te define assim? 
Porque ela é gentil. Eu desconfio um pouco de um poeta que se coloque nesse lugar, nesta época de autoimagens hiperconstruídas do autoengano instantâneo. Para ser xamã, você tem que passar por uma iniciação de vida ou morte, você precisa curar a si mesmo. Eu não diria isso de mim.
Escaldante conecta o cósmico com o extremamente palpável e mundano. Como este livro foi gestado?
Este é o livro que eu levei mais tempo para fazer, porque em todos os outros eu me coloquei numa certa urgência, numa rota até o limite físico do escrever. Escaldante são aqueles poemas que eu fui fazendo na beira da estrada ao longo de tantos anos que eu nem sei dizer. E também traz uma série de imagens, que chamo de “ambientais” e assino como Ambos, que é “coautor” do livro. São intervenções gráficas que fiz numa série de pedras de tamanho médio, descartadas pela construção civil, e que depois fotografei ao longo de várias derivas pela cidade, criando colagens gráfico-espaciais por meio da fotografia. Existe mesmo isso que você disse, uma ligação entre o cósmico e o chão. Eu ando muito a pé, ao mesmo tempo tenho uma relação forte com a atividade da contemplação, então eu tento transformar a observação em beleza. A origem do sentimento espiritual é a contemplação, você se deparar com o absurdo da beleza que está disponível. E é nesse estado de percepção que consigo criar. Na cidade, isso acaba se ligando muito com a calçada, com o meio-fio, com a sarjeta, a sujeira. É uma forma de olhar para cima olhando para baixo.
E existe uma ambivalência temporal, como diz aquele verso: arcos futuros alçados mil anos atrás. Tua escrita concilia muito elementos científicos e tecnológicos com elementos ancestrais e primitivos. 
É uma percepção de que os tempos convivem, e o que vai acontecer já aconteceu. Gosto de me colocar em situações nas quais me vejo fora do tempo, como no caso da experiência psicodélica, ou do ato físico de amar. Eu sou um bicho do mato vivendo em uma megalópole do terceiro mundo. Eu nasci numa ilha, gosto de conversar com o vento, com o movimento das marés, com a gradação da luz do sol. Quando eu penso em tecnologia, me parece um monte de sucata que já passou. E ao mesmo tempo isso tudo é a pedra lascada, é o mecanismo da expansão humana, porque o caminho da espécie é parecido com o caminho dos signos, né? “Os signos crescem”. Tudo caminha para a expansão, e tudo é só um brinquedo para mamíferos. E já que estou aqui, como mais um mamífero experimental no planeta, eu me ocupo com a tecnologia em busca da contemplação possível neste mundo de sucata.

Você transita confortavelmente no meio dessa sucata?
Eu me sinto estranho, mas ao mesmo tempo confortável, porque a tarefa do poeta é o trânsito. É você conseguir fazer a tradução e a passagem de um mundo para outro.
Tarso de Melo definiu a série Siga os sinais na brasa longa do haxixe como “libretos de uma ópera dos tempos convulsivos em que tudo tem donos cruéis e nada faz muito sentido”, mas ele também diz que, diante da tua forma de composição, parece que “tudo rui – e nasce mais bonito”.  Você se reconhece nessa afirmação? 
Haxixe foi um projeto bem desesperado. Eu tinha o núcleo do roteiro e me propus a escrever os seis volumes em um ano, seriam dois meses para cada livro. Às vezes, eu releio e me surpreendo, porque eu tinha uma visão mais dura, achava que era um livro terrível. É um poema distópico onde as personagens estão vivendo uma utopia de sexo, carinho e revolta. É uma epopeia do terceiro mundo.
É como se interessasse também as brechas por onde a utopia ainda escapa. 
Eu tenho uma atração pela experiência da beleza; um querer porque quero cortejar a beleza e me alimentar disso. Eu quero ver e estar sempre em busca de uma possibilidade de gozo.
Teu posicionamento coincide com uma visão otimista do mundo?
Não gosto de cultivar estados mentais de baixa frequência. Talvez meu papel na luta seja criar alguma coisa mais arejada. Existe uma reserva de alegria que eu sempre encontrei na arte. Eu quero escrever coisas que façam contrair o coração. E ao mesmo tempo você tem que morrer todos os dias e aprender a nascer de novo. Não é bem um otimismo, mas um entusiasmo.
Mas a sua perspectiva pode ser facilmente tomada como evasão? É o risco que se corre?
Talvez. Walter Benjamin dizia que a fofoca só existe porque as pessoas têm medo de ser malcompreendidas. E tem aquela história da Nise da Silveira, de que existem mil maneiras de pertencer à sua época. Eu não sei se cultivar a beleza é a pior delas. Eu tenho lido muito Brecht, tenho buscado essas pessoas que tiveram grande fôlego em momentos de ruína, que tiveram fôlego e estômago. E, ao mesmo tempo, por mais que eu me situe como um sujeito histórico, inserido em um processo de transformação socialmente doloroso, tenho uma atração pelas “ilhas desertas”, pelas experiências de solidão social e integração vital com o vazio. A evasão pode ser um direito que as pessoas estão exercendo pouco.
Parece meio perigoso dizer algo assim nos dias de hoje.
Eu fiquei pensando muito nisso quando a gente começou a falar sobre a possibilidade dessa entrevista. Será que eu deveria dar uma entrevista?
E a arte tem estado a serviço de outros discursos?
As pessoas perdem de vista que o prazer que a arte pode gerar tem um caráter desviante muito grande, que você cria novas realidades, e se energiza para as broncas do cotidiano normativo. Isso é uma questão de saúde mental, que ao mesmo tempo não resolve a vida de ninguém, mas você cria uma centelha de rebeldia instintiva. Politicamente me interessa muito saber como meu livro pode chegar ao máximo possível de adolescentes, que vão entrar em contato com um discurso perigoso que não é pra ser entendido de cara, é pra se relacionar de uma forma que não é intelectual apenas, mas é física, sensual, sensível. Chama a atenção que a gente esteja vivendo novamente um momento autoritário, mas que desta vez não tenha a experiência do desbunde. Não tem a experiência social e coletiva daquilo que pode ser visto como escapismo, mas é produção de novas formas de vida.
Quais poetas se comunicam com a sua escrita? 
William Blake é um grande contemporâneo meu; Maiakovski; José Agrippino de Paula, o multiartista importantíssimo; os cineastas Rogério Sganzerla e David Cronenberg. Khlébnikov, Walter Benjamin, Lao Tsé, o poeta místico que não conheceu a morte. Rumi, Gregory Corso, Katsuhiro Otomo, Décio Pignatari. Júlia de Carvalho Hansen, Carla Diacov, Tazio Zambi. Ricardo Aleixo, que é um grande diálogo, todos temos muita sorte de conviver neste momento com Ricardo Aleixo. Sebastião Nunes, Waly Salomão, Valêncio Xavier. Vasko Popa, Hakim Bey, Walt Whitman. Com certeza tem vários de que eu não estou conseguindo lembrar.
Que outras experiências entram no seu processo compositivo?
Eu tenho uma relação muito forte com a psicodelia e as plantas de poder, com a ayahuasca e os cogumelos, com o LSD também, com a maconha. Para mim, sempre foi uma busca espiritual decisiva e uma busca de linguagem decisiva. Todas as experiências de alteração da consciência e do corpo foram também transformações de linguagem, foram chegar a escrever diferentemente. Existe também a relação intermídia com o fazer, ao buscar me contaminar por materiais de naturezas diferentes, códigos plurais, e não fixar a poesia num suporte dado. O dub reggae, o free jazz, as histórias em quadrinho. E o hábito de andar na rua e ouvir as pessoas.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A escola não pode ser uma empresa porque a lógica da educação não é a do mercado





... devemos estudar por amor ao conhecimento, por amor à aprendizagem, para que sejamos homens e mulheres livres. Os alunos têm de compreender que não há saber sem conhecimento e que só se é livre se formos sábios. E isso não têm nada a ver com o mercado e com aquilo que este pede.


A minha grande insatisfação com a universidade Privada sempre foi com a grade curricular e por interesses econômicos, ou seja, menos disciplinas, menos professores , maior lucro. De outro lado há uma necessidade de incorporar apenas o saber técnico, desta feita as disciplinas da área de humanas são excluídas por não ter  um caráter técnico e como se  fosse algo nao inútil.
Lembro-me que fui demitido de uma dessas Universidades Privadas com a alegação de que a disciplina que eu lecionava nao estava mais na grade curricular . Na época  era Antropologia Cultural, isto no curso de Engenharia e suas especializações como: Elétrica,Ambiental de Produção , área de Informática etc.
 Buscava nesta disciplina discutir o caráter  da matéria dentro das categorias do espaço, tempo, e velocidade, enfim da produção/consumo. Embutia aí o  conceito de cultura e como esta se envolvia com aquelas categorias e como as mesmas se moviam dentro da história.Ao mesmo tempo, sublinhava como o homem se inseria e era visto com vistas ao mercado e como o  mesmo o reduzia ou o deformava.
De início os alunos contestavam, mas logo logo eles se abismavam com outro lado da questão que eles não enxergavam no  seu dia a dia. Paulo Vasconcelos
O artigo que vem abaixo, copiado, enquadra-se exato com minhas inquietações, leiam:
...
O professor universitário Nuccio Ordine contesta as “universidades-empresa” e defende mais investimento na educação, nomeadamente nos estudos clássicos.
Nuccio Ordine** acabou há pouco um périplo pela América Latina, depois Lisboa, onde realizou a conferência “A utilidade dos saberes inúteis”, na Torre do Tombo, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos. A conferência está baseada no livro que publicou em 2013.
O livro “A Utilidade do Inútil”, publicado pela Kalandraka, foi traduzido para 20 línguas, está em 30 países e já vendeu mais de 200 mil exemplares. Neste, o professor italiano da Universidade de Calabria, filósofo e especialista na obra de Giordano Bruno, critica a lógica do lucro que chegou ao mundo do ensino e da investigação e propõe uma reflexão sobre quais são os verdadeiros saberes que podem ajudar a sair da crise.
Abaixo a entrevista concedida à Bárbara Wong, do jornal ‘Público’*
Finalizando Nuccio Ordine cita Victor Hugo e a necessidade de se investir na educação: “Seria necessário multiplicar as escolas, as disciplinas, as bibliotecas, os museus, os teatros, as livrarias.”
Actualmente temos gente muito competente à frente de empresas ou de governos, altamente especializada, mas que não sabe identificar uma peça de Bach ou nunca leram Thoman Mann. A escola falhou?
Esse é o grande problema da contemporaneidade: temos gente super especializada e que perdeu o sentido geral e global do saber. Hoje as escolas e as universidades preparam os alunos para seguirem uma especialização e isso é muito perigoso. Estas devem proporcionar uma cultura geral. Einstein já dizia que a especialização mata a curiosidade e esta está na base do avanço da ciência e da tecnologia. Por exemplo, a actual directora do CERN [o laboratório europeu de física de partículas] é uma italiana [Fabiola Gianotti] que fez estudos clássicos no liceu, aprendeu piano durante dez anos, mas é uma grande física. Os maiores arquitectos italianos, como Renzo Piano, fizeram estudos clássicos. Portanto é preciso ter uma cultura geral de base.
O que é preciso mudar no ensino?
O meu livro é um grito de alarme. Quando pergunto aos meus alunos por que estão na universidade, respondem-me que é para obter um diploma. Um diploma não serve para nada! Há uma visão utilitarista da educação que mata a ideia de escola. Vamos à escola para sermos pessoas cultas! Para sermos pessoas melhores, para sermos éticos, não importa o curso.
Na apresentação do meu livro, viajei de Norte a Sul de Itália e os estudantes diziam-me: “Professor, adoro os gregos e os latinos, mas os meus pais perguntam-me ‘o que vais fazer com literatura? Porque não te inscreves num curso onde possas vir a ganhar dinheiro?’ Isto é a corrupção da ideia do que deve ser a universidade! É corromper os estudantes. Temos médicos que o são porque ganham muito dinheiro e não por razões humanitárias e não pelo que prometem no juramento de Hipócrates. Esta corrupção – a ideia de ganhar muito dinheiro – atravessa a sociedade inteira, chega à política, à economia. Por isso temos corrupção no mundo inteiro.
Costumo ler uma história belíssima de Kavafis [poeta grego, 1863-1933] sobre Ítaca, a história de Ulisses, que diz que a experiência da viagem é que fará de ti um homem rico, fará de ti um homem melhor. Se não fizeres essa experiência, de nada te servirá chegar a Ítaca.
Isso significa?
Significa que devemos estudar por amor ao conhecimento, por amor à aprendizagem, para que sejamos homens e mulheres livres. Os alunos têm de compreender que não há saber sem conhecimento e que só se é livre se formos sábios. E isso não têm nada a ver com o mercado e com aquilo que este pede.
No seu livro critica as universidades-empresa.
Contesto a ideia de que as universidades sejam empresas. A nossa missão não deve ser vender diplomas que os estudantes compram. Isso é uma enorme corrupção. A escola não pode ser uma empresa porque a lógica da educação não é a do mercado. O princípio da educação é aprender a ser melhor, para si mesmo e não para o mercado. O que vemos na City em Londres [no centro financeiro britânico] são pessoas com elasticidade mental, pessoas que vêm dos estudos clássicos ou da filosofia porque compreendem melhor o mundo do que os especialistas em economia ou programação.
As consequências da Declaração de Bolonha, que veio alterar a forma como o ensino superior está organizado, são negativas?
Bolonha foi muito dura para o futuro do ensino. Há coisas graves, a começar no léxico, as palavras não são neutras, têm significado, e quando as primeiras palavras que os alunos aprendem, quando chegam ao ensino superior, é “créditos” e “débitos”, impomos uma lógica da economia no ensino. As universidades recebem financiamento consoante os seus resultados, quanto mais alunos com sucesso, mais financiamento recebem, e assim baixa-se o nível para todos passarem. Ninguém vai avaliar a qualidade, só a quantidade. Deixa-se de financiar as pesquisas de base, mas se não fossem essas não seria possível fazer ciência. As grandes revoluções são fruto de pesquisas de base. Por isso, é preciso redireccionar as coisas porque o inútil de hoje pode ser o útil de amanhã.
Que modelo de escola é que defende?
Costumo contar aos meus alunos que Albert Camus, quando ganhou o Nobel da Literatura, fez duas coisas: escreveu uma carta à sua mãe e uma ao seu professor da escola média [3.º ciclo do básico], Louis Germain. Foi ele que o incentivou a continuar a estudar, porque Camus era bom aluno, embora pobre. Camus agradeceu ao seu professor tudo o que fez por ele. É essa a escola que quero! Uma escola em que o professor e o aluno estejam no centro e os professores não estejam soterrados em burocracias. Os professores perderam a paciência para ensinar e a paciência tem de estar no centro da pedagogia.
E os pais? O que podem fazer para criar seres humanos mais completos: dar um computador ou um smartphone ou levar os filhos ao teatro ou a um concerto?
Comprar o computador e levá-los ao teatro, a ler poesia, a ouvir um concerto porque tudo isso pode mudar a vida de uma pessoa. A música pode fazer milagres, como pode a ciência. O poder libertado do utilitarismo pode tornar a humanidade mais humana.
*Entrevista originalmente publicada no jornal português ‘Público’, 21.10.2017.
http://bit.ly/2FAY1wb
**Nuccio Ordine é professor, filósofo e crítico literário italiano, um dos mais importantes estudiosos da Renascença na atualidade, especialmente sobre o filósofo Giordano Bruno.

sábado, 13 de janeiro de 2018

BRASILEIROS QUE CHEGARAM QUASE AO NOBEL: AMADO E DRUMMOND 1967









Nada é curioso e tudo pode ser político, o fato é que as palavras dos brasileiros quase chegaram lá, ao Nobel de literatura.O jornal A Tarde-MG divulgou curiosamente os bastidores -documentos da Academia Sueca, em que constavam o nome de dois brasileiros -Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado, entretanto o aclamado foi o autor da Guatemala- Miguel Asturias.De fato, um ou outro mereceriam o Prêmio pelo conjunto de suas obras e o caráter de excelência  em Literatura, mas não sabemos os entraves, os tais políticos  decisivos  que determinaram a exclusão.Ambos obtiveram outras  premiações pelo mundo afora e aqui mesmo no Brasil suas consagrações ficaram, e mais importante, na boca dos consumidores de boa literatura e poesia.Amado aos poucos não aparece tanto, como deveria,sabe-se lá o porquê, ou será que os baianos ou donos dos seus direitos sabem?  

...



Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado chegaram perto de vencer o Nobel de Literatura em 1967. É o que revelam documentos liberados pela Academia Sueca, que concede o prêmio todo ano, recém-divulgados.
Os arquivos da instituição são divulgados apenas 50 anos depois da escolha. A lista também mostra escritores aclamados, porém nunca premiados com o Nobel, como Jorge Luis Borges e Graham Greene.
O vencedor de 1967 foi o escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias. Na ocasião, a Academia elogiou o trabalho de Asturias “por seu feito literário vívido, fortemente baseado nos traços nacionais e nas tradições dos povos indígenas da América Latina” – é curioso notar que uma descrição muito parecida poderia ter sido atribuída à obra de Amado.
O nome do escritor baiano foi sugerido pela União Brasileira de Escritores, pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, e por professores das universidades do Texas, da Columbia e de Vanderbilt, nos Estados Unidos. O nome de Drummond foi sugerido pelo poeta sueco Gunnar Ekelöf (1907-1968).
Um tuíte da conta oficial do Prêmio Nobel afirma que o Comitê de Literatura não entrou acordo naquele ano – o presidente da Academia sugeriu o nome de Greene, e outros membros queriam dividir o Prêmio entre Borges e Asturias.
Lista. Dos nomes na lista divulgada pela Academia Sueca, Yasunari Kawabata levaria o Nobel em 1968; Samuel Beckett no ano seguinte; Pablo Neruda em 1971; Eugene Montale em 1975; Saul Bellow em 1976 e Claude Simon em 1985. O autor britânico nascido na àfrica do Sul, J. R. R. Tolkien, conhecido pela série “O Senhor dos Anéis”, estava entre os 70 nomes da lista.
Entre outros nomes conhecidos por aqui, também figuravam Georges Simemon, Ezra Pound, Edmund Wilson e Alejo Carpentier. Cinco mulheres também estavam na disputa: Marie Luise Kaschnitz, Katherine Anne Porter, Anna Seghers, Judith Wright e Lina Kostenko.

Vide matéria Jornal:http://bit.ly/2mwUdDA

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

É PRECISO LEMBRAR O QUE VALE SER LEMBRADO : AUGUSTO DOS ANJOS -Capturas do Face F Mattos






Augusto dos Anjos1884-1914 in http://bit.ly/2m8szNP

Nada como o poeta e sua atenção ao tempo, à  história  poética,nada como ser atento  ao que se escreve  de bom, de faro certeiro, assim é o professor Florisvaldo Mattos, sempre presente aqui neste blog, seu faro é  de um esteticista inteiro e nos ensina e dá-nos lições, mesmo por outras bocas, juntando as maravilhas, como frutas maduras de sabores diversos - como Augusto dos Anjos  por Alexei Bueno..".Se essa vivência trágica é, ao nosso ver, o fundamento mesmo da obra de Augusto dos Anjos, outra característica sua serve para dar à sua dor a ressonância universal e mesmo cósmica que a caracteriza"

Paulo Vasconcelos



É PRECISO LEMBRAR O QUE VALE SER LEMBRADO
Magnífico e veraz este ensaio do excelente poeta, crítico e historiador literário Alexei Bueno (um dos nossos maiores), publicado em seu blog, sobre a gênese da poética do grande Augusto do Anjos, que considero, como ele próprio, o mais alto representante do expressionismo na poesia brasileira.
Parabéns, Alexei, salve, salve! (Muito obrigado, poeta Ruy Espinheira Filho, por me ter enviado o link por e-mail).
Segue abaixo o texto, ilustrado com uma pintura do que considero o maior expressionista baiano, Sante Scaldaferri (1928-2015).


Sante Scaldaferri (1928-2015).

AUGUSTO DOS ANJOS: ORIGENS DE UMA POÉTICA
A poesia de Augusto dos Anjos nos impressiona, até hoje, pela extrema especificidade do indivíduo que a compôs, pelo caráter de independência extrema, quase de geração espontânea, com que ela irrompeu no panorama da literatura brasileira. De fato, essa independência do indivíduo pensante, tão ou mais espantosa do que a do poeta que ele era, justifica imediatamente o título do Eu, provando de resto a aguda autoconsciência de seu autor.
Por mais que haja influências do inconsciente na gênese desses poemas, como em geral sempre há quando se trata da grande poesia, é inegável que, uma vez realizada, cada obra de Augusto dos Anjos era friamente apreendida pela sua cortante inteligência, que não deixaria de perceber, entre características muito menos óbvias, a estranheza profunda que causaria a seus contemporâneos, fato mesmo gerador de dois significativos poemas, “O poeta do hediondo” e “Noli me gangere”, cruéis e exacerbados auto-retratos, menos de como ele deveria se sentir do que de como ele sabia que o sentiriam, e quase uma justificativa prévia de quem se sabia responsável por ultrapassar as fronteiras temáticas do recomendável e do aceito.
Em muitas coisas, no entanto, o poeta de “Os Doentes” é visivelmente um homem de sua época e de seu meio, como não poderia deixar de ser, e características suas, do pensador e do poeta, são encontradas em alguns de seus contemporâneos, como facilmente se demonstra. Uma das bases primordiais de sua visão do mundo, e, por conseguinte, de sua obra, o seu propalado cientificismo, caracteriza bem o indivíduo educado nos últimos anos do século XIX, o século por excelência do ufanismo científico, da euforia do conhecimento e da ilusão do progresso ilimitado, criador de uma relativa onipotência do homem sobre a matéria, crenças cruelmente frustradas pelo advento bárbaro da Primeira Guerra Mundial, no ano mesmo da morte do nosso poeta.
Entre diversas generalizações filosóficas possíveis em voga naquele instante, desde o positivismo até o marxismo, Augusto dos Anjos, de maneira bastante sintomática, adotou como crença pessoal os sistemas que mais dariam ensejo a uma visão predominantemente mística e totalizadora do universo, ou seja, o Evolucionismo, vindo de Darwin mas sobretudo filtrado por Spencer, e, mais decisivamente, o Monismo, o grande sistema unificador da fenomenologia universal fervorosamente propagandeado por seu criador, Ernest Haeckel, racionalização materialista carregada de grande possibilidade de expansão religiosa, e construída aliás sobre diversas premissas biológicas alfas ou erroneamente interpretadas.
O que nos parece inegável no caso de Augusto dos Anjos é a sinceridade primordial de sua adesão intelectual e mesmo emocional aos postulados dessa visão de mundo, residindo aí, inclusive, a sua capacidade espantosa de escrever alta poesia a partir dos mesmos, fato que elimina qualquer suspeita de um temperamento de poseur ou de pedante na sua exibição de pensamento científico. Se na questão do léxico, sobretudo talvez em sua prosa, nos parece que o poeta sucumbiu a uma irresistível compulsão a épater le bourgeois com sua esmagadora cultura, parece-nos que na sua poesia o uso do mesmo vocabulário, mitigado aliás na última fase, é fruto de um fluxo de sensibilidade absolutamente autêntico, não só dos conceitos inerentes aos vocábulos, mas também do poder encantatório estranho e musical de seu arcabouço fonético. A presença de semelhante uso até em sua correspondência pessoal, escrita sem nenhuma intenção de fazer literatura, nos prova, aliás, o quão natural era para ele tal processo, apesar do tom estranhíssimo que adquire no âmago de uma epistolografia familiar.
Parte da incompreensão que se criou em torno desse uso de vocabulário científico, mais especialmente nomes de espécies e termos filosóficos, nasce, na verdade, de uma certa preguiça mental do leitor em relação a vocábulos que lhe causam estranheza e cuja utilização lhe parece despropositada e inútil. A incorporação, no entanto, desses seres ínfimos, desses microorganismos que nos são tão estranhos quanto os próprios nomes que os designam, está perfeitamente no plano do poeta, porta-voz da essência de todos os seres, e não apenas do homem. A originalidade dessa posição é marcada pela originalidade sonora do nome das espécies. Assim, quando em “Budismo moderno” o poeta se refere às “diatomáceas da lagoa”, cuja cápsula criptógama é bruscamente desfeita pelo contato involuntário de uma mão humana na superfície da água, ele cria uma originalíssima metáfora de sua própria fragilidade, que um golpe qualquer de uma força superior pode destruir, ao mesmo tempo que se identifica, na solidariedade de condenados à morte, a essas vidas mínimas que também o são, o mesmo que ocorre em “Alucinação à beira-mar”, onde os “malacopterígios subraquianos / que um castigo de espécie emudeceu” lhe “pareciam também corpos de vítimas / condenadas à Morte, assim como eu!” Como podemos ver, nenhum exibicionismo gratuito, nenhuma proximidade do bestialógico, mas apenas um uso radicalíssimo das infindáveis possibilidades do léxico, de resto estatisticamente muito pequeno em relação ao total de seu vocabulário para justificar a fama imerecida de delírio vocabular que muitas vezes lhe imputaram.
O que é importante ressaltar é a maneira como o Monismo evolucionista se transformou nas mãos de Augusto dos Anjos em uma espécie de sistema místico totalizador, que lhe serviu de base tão legítima para o exercício estético quanto diversos sistemas religiosos serviram para poetas místicos de todos os tempos. A sensibilidade exacerbada para a percepção da energia potencial oculta em toda a matéria (“O lamento das coisas”, “As montanhas”, “Numa forja”, “O pântano”, “A floresta”, etc.) é uma de suas características mais marcantes. Em contrapartida, porém, a esse mecanismo quase otimista do caráter evolutivo do universo, sobrevive em seu espírito um forte elemento de negação da vida enquanto criadora do sofrimento, um budismo de origem claramente schopenhaueriana, como encontramos também em Antero de Quental ou Raimundo Correia (“A um gérmen”, o “Soneto” ao filho natimorto, etc.), que se inclui igualmente entre as influências gerais do pensamento finissecular. Dessa maneira, o que verdadeiramente podemos detectar na visão do mundo do poeta, é um movimento pendular entre a adesão a um postulado filosófico e a descrença parcial ou total na sua eficácia, bem como na de todos os outros sistemas, quando confrontados com a simples e implacável presença da maior das evidências da vida e do universo: a morte, destruidora paciente e impiedosa de todos os esforços e devaneios humanos.
Esse caráter pessimista da poesia de Augusto dos Anjos quanto ao pretenso poder da ciência contra o mistério do universo, essa falta de crença na eficácia de todo o esforço humano, é uma das suas características que mais o aproximam de nós, exilados há muito do ingênuo ufanismo cientificista do século passado. Tal como o Fernando Pessoa que concluía “Não procures nem creias. Tudo é oculto” e afirmava:
Cega, a ciência a inútil gleba lavra.
(“Natal”)
o poeta paraibano, convicto igualmente da impotência da cognição, escrevia:
Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra...
(“As cismas do Destino”)
Revelando como, muito mais do que poeta da morte, como popularmente o cognominaram, Augusto dos Anjos é o poeta do fracasso do enfrentamento do mistério, da impotência perante o incogniscível, conclusão igual à que encontraria qualquer místico; e a morte comparece, antes de tudo, para esse grande radical, como o último e maior de todos os fracassos, como a mais absoluta e definitiva forma de impotência. Poema central dessa tendência, entre inúmeros outros e fragmentos de outros, é o soneto “O mar, a escada e o homem”, bem como o “Solilóquio de um visionário”.
Como exemplo da primeira tendência em poetas seus contemporâneos, ou seja, a percepção panteísta ou potencial do universo, podemos citar o belo soneto do poeta mineiro Augusto de Lima (1860-1934), poema no qual, com um tratamento mais clássico, encontramos um tema muito caro ao nosso poeta:
NOSTALGIA PANTEÍSTA
Um dia, interrogando o níveo seio
De uma concha voltada contra o ouvido,
Um longínquo rumor, como um gemido,
Ouvi plangente e de saudades cheio.
Esse rumor tristíssimo, escutei-o:
É a música das ondas, é o bramido,
Que ela guarda por tempo indefinido,
Das solidões marinhas de onde veio.
Homem, concha exilada, igual lamento
Em ti mesmo ouvirás, se ouvido atento
Aos recessos do espírito volveres.
É de saudade, esse lamento humano,
De uma vida anterior, pátrio oceano
Da unidade concêntrica dos seres.
(Símbolos, 1892)
ou o poema seguinte, de Hermes Fontes (1888-1930), um dos literatos que melhor compreenderam o Eu quando de seu aparecimento:
A PRIMEIRA PEDRA
― Corpo que se encontrou abandonado de alma,
Corpo que não se pôde à ação do ar decompor ―
Uma pedra é uma vaga imóvel... É uma calma
Recordação do mar de que foi leito a estrada,
Uma vaga do mar dos Tempos, retardada,
Que por aí ficou sem sentidos, parada,
Adormecida por um íntimo torpor.
É a Impassibilidade esculturada. Dorme.
Secou-lhe o sangue, e não consegue apodrecer.
Vive? É possível. Morre? É provável. Conforme
A Vida e a Morte... A pedra é um ponto de partida.
É o princípio da Morte, é o princípio da Vida...
É um gesto contrariado, é uma força contida,
É o Ser que adormeceu em caminho do Ser...
(Gênese, 1913)
Prova, afinal, da índole essencialmente mística do soi disant materialismo de Augusto dos Anjos encontramos no belíssimo soneto “Ultima visio”, no final de “Os Doentes” ou em arroubadas e impressionantes estrofes como esta:
Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!
ou como essa outra (que julgamos muito mais indicada para ser escrita no seu túmulo do que o último terceto de “O poeta do hediondo”, que de fato lá está):
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
Esse sentimento de onipotência, esse êxtase do absoluto que é parte inseparável do espírito de Augusto dos Anjos, é que deu origem à contradição trágica que é a base mesma de toda a sua poética. Materialista, acreditando racionalmente em um evolucionismo panteísta onde só a generalidade das formas universais progredia e sobrevivia, o poeta era obrigado a conscientemente se tomar por um efêmero, aleatório e ínfimo acidente genético na grande cadeia das espécies, condenado sem apelação à desaparição total enquanto especificidade individual. O que lhe era no entanto convicção racional, não lhe podia ser vivência subjetiva. Ciente, portanto, da morte implacável, e crendo nela com a fé com que cria no seu bem construído sistema, e jamais indiferente a esse ou a qualquer outro fato, como ser perscrutador das essências, tudo aliado à uma sensibilidade desmedida, dotada de uma capacidade de representação requintadíssima, podemos sentir com uma nitidez quase solidária o paroxismo de angústia que tal inadequação entre o raciocínio e a sensibilidade deve ter causado ao poeta da “Eterna mágoa”.
Foto de formatura de Augusto dos Anjos, com dedicatória para seu amigo Leonardo Smith, editor do Nonevar, no qual o poeta muito colaborou. (Coleção do autor)
Se essa vivência trágica é, ao nosso ver, o fundamento mesmo da obra de Augusto dos Anjos, outra característica sua serve para dar à sua dor a ressonância universal e mesmo cósmica que a caracteriza. Tomando nas próprias costas a missão de ser a consciência e a voz da Dor universal, desde as formas inorgânicas até ao homem e mesmo ao cosmos, o poeta se torna o possuidor empático e exasperado do tesouro de misérias sociais, fisiológicas e genéticas que a realidade brasileira lhe entrega como espetáculo cotidiano e terrível. Daí tem início o desfile expressionista de bêbados, idiotas, tuberculosos, palermas, leprosos, prostitutas, estropiados, abortos, malucos e muitos outros que invadem com grande freqüência partes das mais características de sua poesia. O mesmo fenômeno pode ser explicitamente encontrado em trechos de Antônio Nobre, como na “Lusitânia no Bairro Latino” ou no Cesário Verde da segunda parte de “Em petiz”. De fato, sentimos muita coisa da temática e do ritmo de Augusto dos Anjos em estrofes como estas:
Outros pedincham pelas cinco chagas;
E no poial, tirando as ligaduras,
Mostram as pernas pútridas, maduras,
Com que se arrastam pelas azinhagas!
Vícios, sezões, epidemias, furtos
Decerto, fermentavam entre os lixos;
Que podridão cobria aqueles bichos!
E que luar nos teus fatinhos curtos!
Da mesma maneira o sistema narrativo do passeio noturno, de uso tão geral na obra do poeta do Eu, é o mesmo utilizado por Cesário Verde no “Sentimento de um ocidental”. De fato, todos os poetas mencionados, como o Antônio Nobre que exclama: “Qu’é dos pintores do meu país estranho?/ Onde estão eles que não vêm pintar?” referindo-se ao cromatismo das dermatoses e ao pitoresco dos desgraçados da rua, possuem essa compreensão pós-baudelairiana das possibilidades estéticas do horrível, que atingiu a poesia ocidental depois de “Une charogne”. Sua origem no entanto, mesmo que sempre marginal ao classicismo, é velha como a arte, pelo menos tão ancestral quanto o pé de Filoctetes, explodindo periodicamente no memento mori da arte cristã ou no mórbido do maneirismo e do barroco, em jacentes cobertos de vermes ou nas moralidades claro-escuras de um Valdés Leal.
De Poe até Baudelaire, depois através de todos os “decadentes”, de um Richepin da Chanson des gueux ou de um Rollinat de Les névroses, essa audácia da análise social dos naturalistas, alcança a poesia brasileira por meio dos nossos próprios “decadentistas”, mais uma prova da filiação simbolista do expressionismo de Augusto dos Anjos. Basta, para a compreensão disto, o exame de um poema como “Ébrios e cegos” de Cruz e Sousa, o último de Faróis, poesia sob todos os aspectos extraordinária, onde, de maneira pessoalíssima, o Poeta Negro atinge um expressionismo torturado, trágico, quase surrealista.
A união entre essa liberdade de tratar da maneira mais crua o espetáculo da miséria humana com a adesão a um sistema científico totalizador e ateu, sem haver no realizador de tal conjunção qualquer possibilidade de apaziguamento subjetivo dentro dela, eis, na nossa opinião, a origem primordial da poética do Eu.
Formalmente, essa essência foi vazada numa sonoridade rígida e tensa, com recursos extremos na busca da expressividade sonora ― uso primordialmente simbolista ― tudo aprisionado no entanto em uma métrica ortodoxamente parnasiana. Augusto dos Anjos é, de fato, o rei da sinérese implacável na poesia brasileira, mais do que qualquer parnasiano (o que lhe chega mais perto nesse aspecto talvez seja o pouco lembrado Luís Carlos), sendo também, mais do que qualquer simbolista, o rei da aliteração. Raramente encontramos um hiato sobrevivente à sua metrificação impiedosa.
De um virtuosismo no verso praticamente insuperável, embora de variedade bastante limitada, a roupagem normal da poesia de Augusto dos Anjos é o seu sonoríssimo e persistente decassílabo, onde as metáforas mais espantosas e exatas se amontoam quase clustrofobicamente, dando-nos sempre a impressão de uma força agrilhoada, de um infinito preso dentro de uma camisa de força, na iminência esperada de explodir, o que é no mínimo um registro perfeito para conter a sua temática de ânsia insanável do absoluto e desespero concreto. Dentro desse ritmo implacável, inseparável dele, é que o leitor encontra o fulcro talvez de sua realização estética, uma exatidão vocabular sem paralelo, iluminadora, acima de todo o uso padronizado da linguagem poética, quase como se o autor escrevesse numa língua original, com uma percepção virgem do sentido das palavras, do mesmo modo que com um olhar virgem do espetáculo do mundo, fenomenologicamente puro e esmiuçador. De fato, o poeta que cria quase a cada verso expressões de inesquecível exatidão, uma “espionagem fatídica dos astros”, um “corpo ubiquitário do Criador”, ou essa espantosa “noumenalidade do NÃO SER”, entre centenas de outras, teria que forçosamente realizar um livro da força do Eu, cuja uniformidade de grande poesia supera, no total, mesmo a dos maiores livros da poesia brasileira, um Espumas flutuantes, um Últimos sonetos, um Últimos cantos, obras máximas onde, mesmo assim, a voltagem às vezes desce um pouco, comparados com a unidade de força do Eu, só encontrada em pouquíssimos livros, em um Clepsidra, em um Mensagem. Materialmente, para a compreensão técnica dessa forma eficaz e original em que se expressou o poeta de “A árvore da serra”, entre diversos estudos a ela dedicados retornamos sempre ao ensaio clássico de Manuel Cavalcanti Proença., O artesanato em Augusto dos Anjos.
Essa limpeza de visão que mencionamos, essa capacidade de ver, livre de qualquer roupagem eufemística, o real ― esse estado ofuscante que a maioria dos homens, julgando-se seus plenos possuidores, jamais conseguiu nem rapidamente entrever ― é a origem, uma vez vazada na mais plena eficácia verbal, do poder emocional da poesia do Eu. Vejamos, por exemplo, o grande poema escrito para o seu filho morto aos seis meses de gestação:
Soneto
Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos.
2 de fevereiro de 1911.
Agregado infeliz de sangue e cal,
Fruto rubro de carne agonizante,
Filho da grande força fecundante
De minha brônzea trama neuronial,
Que poder embriológico fatal
Destruiu, com a sinergia de um gigante,
Em tua morfogênese de infante
A minha morfogênese ancestral?!
Porção de minha plásmica substância,
Em que lugar irás passar a infância,
Tragicamente anônimo, a feder?!
Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,
Panteisticamente dissolvido
Na noumenalidade do NÃO SER!
A não ser para os irremediavelmente refratários ao reconhecimento do lado relativo, frágil, trágico, e no entanto tão diariamente presente, da existência humana, estamos perante uma obra de arte de extrema exatidão, tanto na percepção do real quanto no sentimento dela conseqüente. Estamos, ao contrário de todo o vago, de todo o hermético, perante uma iluminação quase excessiva, uma clareza superior à da apreensão normal da consciência, uma poesia direta e iluminadora. O soneto se inicia, cruamente, por duas definições em seqüência, cada uma um verso, onde cada palavra, diríamos mesmo cada sílaba, cumpre uma insubstituível função conceitual e emocional. Depois de um perfeito desenvolvimento, chegamos então aos tercetos, onde a pungência trágica e a eficácia vocabular atingem os ápices da grande poesia, desde a definição exata e quase tátil do 9º verso até a pergunta terrível dos dois seguintes. “Em que lugar irás passar a infância, / Tragicamente anônimo, a feder?!” Que ironia maior que essa palavra “infância”, usada num sentido puramente cronológico, para quem nunca a terá? E que coisa mais dolorida que esse anonimato, sem retorno, de quem nunca recebeu um nome? E então, para horrorizar os defensores desse conceito esteticamente indefinível chamado “bom gosto”, o verbo “feder”. Mas que fará esse “agregado infeliz de sangue e cal” se não isso? Se há aí algo de mau gosto, é a própria vida, e extrair disso a grande obra arte é a única superação que ela nos permite. Finalmente, no último terceto, depois do sono augurado a esse “feto esquecido” (e que dor nesse profético “esquecido”, como se bem soubesse o poeta que perdas muito maiores também implacavelmente o serão), o insuperável 13º verso: “Panteisticamente dissolvido”, composto de apenas duas palavras, que, com seu comprimento excessivo, reproduzem sonoramente a idéia que carregam. E por fim, verso que já mencionamos: “Na noumenalidade do NÃO SER!”. Nem todos os leitores, infelizmente, terão a possibilidade de apreender esse verso, que Medeiros e Albuquerque julgou um disparate filosófico, em toda a sua profundidade de conceito e sobretudo de emoção.
Essa qualidade de adequação vocabular, característica da grande poesia em todos os tempos, percorre a totalidade da obra madura do poeta de “O lamento das coisas”. Vejamos, por exemplo, nesta poesia citada este verso: “A sucessividade dos segundos”. Há verso mais “sucessivo” do que esse, com a sua infindável cadeia de sibilantes? “Ouço, em sons subterrâneos, do orbe oriundos”. Haverá verso mais “fundo” do que esse? Em tudo, nesses momentos de perfeita realização, a marca desse fenômeno da genialidade, específico do mundo da arte, por ser não um grau superior de uma qualidade intelectual qualquer, mas um estado absolutamente pessoal, involuntário, irrepetível, intransferível e inadquirível de colaboração do inconsciente com o consciente, um milagre que se confunde com um homem e não se repete, chame-se ele Gil Vicente, Camões, Gonçalves Dias, Castro Alves, Cesário Verde, Cruz e Sousa, Pessanha, Antônio Nobre, Alphonsus de Guimaraens, Augusto dos Anjos Pessoa, Sá-Carneiro, Manuel Bandeira, Cecília, Drummond, etc. Daí a importância secundária, humanamente falando, das correntes genealógicas e fecundantes na historiografia de uma literatura.
Quanto às influências dessas correntes, recebidas pelo poeta na sua formação definitiva, e que ficaram visíveis através de sua obra, parecem-nos afastados os autores de outras línguas, visto não estarmos tratando nem de temática nem da genealogia da mesma, da qual falamos acima, mas de uma concreta presença na sua maneira característica.
Nem Rollinat, do qual já o aproximaram não poucas vezes, nem Poe ou os que o seguiram merecem, exclusivamente por estarem na aludida família de sensibilidade, ser citados nesse caso. A mesma coisa não ocorre com Cruz e Sousa e com Cesário Verde. A influência do poeta dos Broquéis, sobretudo em seus sonetos derradeiros, sobre o modo de estruturá-los que encontramos em Augusto dos Anjos, especialmente na primeira fase, é inegável, parecendo-nos que na origem de ambos há algo de Antero de Quental, de resto o iniciador da retomada pós-arcádica do soneto como grande forma na literatura de nossa língua.
Vejamos, por exemplo, a construção desses dois famosos sonetos, o sublime “Sorriso interior” de Cruz e Sousa, seu último poema, escrito três dias antes da morte, e o “Eterna mágoa” de Augusto dos Anjos, com um título que lembra muito de perto os do Poeta Negro:
SORRISO INTERIOR
O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.
Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem mágoas e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila,
Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.
O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio.
Agora o soneto do Eu:
ETERNA MÁGOA
O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem que é triste,
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
Não crê em nada, pois nada há que traga
Consolo à mágoa a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
Como podemos ver, a mesma estrutura baseada em um desenvolvimento conceitual que atravessa todo o corpo do soneto, até resolver-se no último verso, o mesmo andamento severo, classicamente solene, apesar da diferença essencial entre o pensamento luminoso do primeiro e a conclusão sombria do segundo.
Mais decisiva, porém, por agir não sobre uma fase de uma forma fixa, mas exatamente sobre a quadra de decassílabos que se tornou o instrumento por excelência da expressão do poeta, nos parece ser a quadra de decassílabos de Cesário Verde, sem esquecer a sua incorporação de um léxico cotidiano, material e prosaico, sendo inclusive o vocabulário científico também encontrado no poeta português. Cronologicamente, no caso do nosso autor, o contato com Cesário Verde deve ter acontecido a partir da segunda edição do Livro, a de 1901, visto a primeira, de 1887 e com duzentos exemplares, ter sido muito pouco divulgada. É provável, no entanto, que algo de sua poesia tenha chegado ao Brasil antes da edição popularizadora (o que é fato a ser estudado), como podemos rastrear em poetas como B. Lopes, pois é difícil conceber a existência de um poema como “Inverno”, incluído no Brasões, de 1895, sem a leitura da obra de Cesário Verde. A seleção, dentre os versos do poeta lisboeta, de algumas de suas estrofes mais cheias das características lexicais que mencionamos, mas sobretudo mais sonoramente aproximadas da maneira de Augusto dos Anjos, causará a qualquer leitor experimentado do poeta do Eu uma impressão de evidente familiaridade, às vezes mesmo de quase identidade sonora. Vejamos alguns exemplos, entre muito possíveis:
Era a desolação que inda nos mina
(Porque o fastio é bem pior que a fome)
Que a meu pai deu a curva que o consome,
E a minha mãe cabelos de platina.
Era a clorose, esse tremendo mal,
Que desertou e que tornou funesta
A nossa branca habitação em festa,
Reverberando a luz meridional.
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“Moléstia negra” nem “charbon” não era,
Como um archote incendiando as parras!
Tão pouco as bastas e invisíveis garras,
De enorme legião do filoxera!
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Nos vinhatórios via fulgurar,
Com tanta cal que torna as vistas cegas,
Os paralelogramos das adegas,
Que têm lá dentro as dornas e o lagar!
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A impressão doutros tempos, sempre viva,
Dá estremeções no meu passado morto,
E ainda viajo, muita vez, absorto,
Pelas várzeas da minha retentiva.
Então recordo a paz familiar,
Todo um painel pacífico de enganos!
E a distância fatal de uns poucos anos
É uma lente convexa, de aumentar.
(“Nós”, Livro de Cesário Verde)
Como vemos, até o uso característico dos vocábulos esdrúxulos, como no segundo verso da última quadra, ou o uso de expressões das ciências naturais, como na terceira, sem contar as metáforas audaciosas e sobretudo a cadência do verso, mostram a grande proximidade entre o extraordinário poeta português e o admirável paraibano, parecendo-nos, apesar da inegável influência do primeiro sobre o segundo, um caso de sensibilidades afins, fraternalmente próximas, onde a primazia cronológica é mais um acidente ocasional do que uma ordem implacável, e onde talvez uma simples inversão de prioridade provocasse uma inversão de influência, ao menos se houvesse canais de comunicação eficazes para tanto.
Da mesma maneira, é justamente com Cesário Verde em Portugal e com Augusto dos Anjos no Brasil que a incorporação de um vocabulário violentamente apoético pelos cânones clássicos, de um léxico da realidade concreta, reles, diária, mesquinha, abre as portas para uma invasão da are no campo da realidade em seu sentido mais concreto. Se há algo de realmente específico, original, na poesia mundial do último século e meio, é essa conquista do território do banal, essa capacidade nova e extraordinária de extrair o sublime das áreas mais reles da realidade. Como disse Baudelaire: “J’ai pétri de la boue et j’en ai fait de l’or.” E isso fizeram na nossa língua os poetas em questão. Muito mais importante que o vocabulário científico, muito mais característico e decisivo para a história de nossa poesia, é o uso feito pelo poeta paraibano dessas palavras, reflexos da realidade em si, que dificilmente entraríamos em um poema de Alberto de Oliveira, de Martim Fontes ou de Olavo Bilac: fogão, bacia, ferrolho, escarradeira, cuspo, querosene, colher, lixo, mulambo, entre muitíssimas outras. Sem ser de maneira nenhuma um realista, consciente de que a simples reprodução do real não alcança o âmago essencial da realidade sem se valer para isso dos artifícios da arte, o poeta do Eu lança mão deles, tal como seu colega lisboeta, para atingir esse manancial virgem e inesgotável de criação estética e compreensão humana, podendo fazer sua a declaração quase goethiana de Serguei Eisenstein: “Não sou um realista; afasto-me do realismo para atingir a realidade.” Ou o exemplo pictórico extremo e decisivo de um Van Gogh. Dessa maneira, acrescentando ao tom e ao repertório elevado da arte clássica a liberdade maneirista e barroca, e alcançando uma vastidão temática nunca imaginada, a arte contemporânea penetrou nos mais defendidos baluartes do real, nas suas manifestações internas ou externas, seja através do ilimitado aprofundamento essencial de um Rilke, de um Valéry ou de um Pessoa, seja através da visão ineditamente totalizadora da realidade material de um Cesário Verde ou do extraordinário artista de que tratamos.
O que, a despeito de tudo isso, de toda essa intrincada e secundária rede de afinidades e origens, é incomunicável e primordial em Augusto dos Anjos, e que encerra a sua maior grandeza, é a sua pessoalíssima e desesperada empatia com a limitação universal, ou seja, a sua quase mística ânsia do absoluto, que produziu para a poesia brasileira a manifestação mais pungentemente trágica de toda a sua história.
Alexei Bueno